José de Souza Martins
Os arriscados ajuntamentos diante da entrada do Palácio do Planalto são verdadeiras armadilhas em que o presidente caiu, como tem caído em outras
Situações sociais anômalas, como as decorrentes da pandemia da covid-19,
possibilitam a observação sociológica de urgência de ocorrências
inesperadas. As diferentes do que é pressuposto no conhecimento
consolidado. Ante indagações que lhes têm sido dirigidas, pesquisadores de outras
áreas fazem a ressalva de que enfrentam um problema médico ainda sem
informações suficientes para fundamentar previsões, a não ser as
provisórias. Nas ciências sociais é a mesma coisa. Neste caso, no trato
dos desdobramentos correlatos, como os do comportamento na situação
social cujas referências a epidemia desorganiza.
Ao fazer o que habitualmente não fazem ou ao continuar a fazer o que a
situação de crise já não recomenda, as pessoas, individual ou
coletivamente, criam situações sociais que o sociólogo pode analisar
como de tipo experimental. Pode nelas identificar o que é
metodologicamente relevante para a observação científica. As ciências sociais não são ciências de laboratório. Comportamentos
esdrúxulos podem, porém, permitir sua análise como se fossem atos em que
os próprios atores, sabendo ou não, desafiam o costumeiro e o correto.
Os agentes da conduta anômala são, assim, involuntariamente cobaias. Não
porque sejam induzidos pelo pesquisador a fazer o que não querem, mas
porque fazem o que a ciência precisaria fazer, mas não pode. O
verdadeiro pesquisador está sempre de prontidão para reconhecer as
revelações científicas do inesperado e do acaso. Importantes descobertas
científicas foram feitas desse modo. Dedico-me à observação e ao estudo de ocorrências desse tipo, quando
propícias à análise sociológica. É o caso dos arriscados ajuntamentos
diante da entrada do Palácio do Planalto, ocorridos em meados de março,
verdadeiras armadilhas em que o presidente da República caiu, como tem
caído em outras.
Ele demonstra, publicamente, ser movido pela ilusão de um voluntarismo
do qual supõe estar fazendo uma coisa, quando, na verdade, à luz das
consequências inversas da ocorrência que provocou, está fazendo outra,
que ele não sabe qual é. Nessa inconsciência, se desgasta e assim
compromete a instituição que representa. O experimento mostra que é
movido por falsa consciência da realidade social. Para esse tipo de observação científica ele é uma cobaia involuntária,
como o são os bajuladores que dele se acercam nessas ocasiões. A
situação de risco e de conduta social não recomendada, mas observável,
possibilita que o observador identifique os tipos de mentalidade que em
situação “normal” não se expressariam daquele modo.
Nas duas manifestações de porta de palácio, com a participação do
presidente da República, como na ocorrência do dia 15 de março e na do
dia seguinte, três perfis de comportamento desconstrutivo da imagem
presidencial podem ser identificados. Diferentemente da suposição
aparente do governante, não se tratava propriamente de um grupo de apoio
e de aplauso.
A figura mais expressiva foi a do jovem imigrante haitiano que se
dirigiu a ele dizendo-lhe incisivamente: “Você não é mais presidente”.
Sublinhava nele o comportamento em desacordo com o recomendado pelos
médicos, quanto a evitar contatos, por ser ele um potencial transmissor
do vírus. Destacava, assim, a impropriedade de suas ações, em face da
liturgia de seu cargo e de sua função simbólica. [Pacífico que a conduta do haitiano foi totalmente em desacordo com a que emigrantes, acolhidos pela generosidade dos brasileiros, estão obrigados a seguir.
O que justifica sua imediata expulsão.]
A circunstância teve outros componentes desconstrutivos. Na pequena
multidão, trajes verde-amarelo e rostos pintados de verde e amarelo
definiram um cenário carnavalesco, fora de hora. Uma antecipação
descabida de campanha eleitoral. De certo modo, o país já começa a viver
um momento de luto coletivo. O ato, estimulado pelo próprio presidente,
aos olhos atuais da população, era completamente desrespeitoso,
impróprio e até sacrílego.
O presidente da República vinha sendo alertado sobre a imprudência de
receber os manifestantes do ato político contra as instituições, contra o
Congresso Nacional e o STF, por ele convocado. Violara,
provocativamente, as normas de Estado quanto a cautelas em face da
pandemia. Sobretudo na medida em que vários dos participantes de sua
caravana aos Estados Unidos, com ele em contato próximo durante muitas
horas, foram contaminados. Próximo ao presidente da República, outro manifestante, cuja linguagem
revelava ser evangélico, insistia em perguntar-lhe se aceitaria fazer
uma oração com ele ali mesmo. Uma técnica fundamentalista de conversão
religiosa. Julgava-o carente de conversão. O caso é indicativo de um entendimento de que as três religiões dos
batismos de Bolsonaro não convencem de que tenham sido suficientes para
cobri-lo com o manto da proteção divina e, por meio de sua função
simbólica de poder, cobrir-nos a todos.
José de Souza Martins, sociólogo - Valor Econômico