Janot recorre a metáforas e Fachin cala sobre falhas da delação de Joesley
Na semana em que o relator da Operação
Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF) comemorou, em silêncio
cerimonioso, a vitória por 11 a 0 contra os colegas que desafiam seu
poder absoluto sobre os destinos dos réus sob o peso de seu martelo, seu
parceiro procurador-geral da República recorreu a uma metáfora
primitiva. O ministro do STF Luiz Edson Fachin e o chefão do Ministério
Público Federal (MPF), Rodrigo Janot, este em fim de linha não se sentem
forçados a dar explicações por terem patrocinado a delação premiada
mais generosa da História da humanidade, que ambos concederam a Joesley
Batista, o bamba do abate.
Todo mundo sabe, pelo menos dentro dos limites do Distrito Federal, que Ricardo Saud, um dos delatores premiados da holding J&F,
que deixaram Anápolis, em Goiás, para brilhar nesse mundão grandão de
Deus, foi solícito parceiro do excelentíssimo e eminentíssimo relator em
sua peregrinação à cata de votos a seu favor na sabatina do Senado para
aprovar sua nomeação para o Supremo. É ainda de conhecimento público
que sua escolha não foi abençoada pela ausência de suspeitas e
desconfianças, no momento em que a dra. Dilma Vana Rousseff Linhares
resolveu substituir o relator do mensalão, Joaquim Barbosa, por ele. E
não eram meros detalhes desprezáveis, como diria o dr. Michel Miguel,
devoto de palavras dicionarizadas que não têm uso corriqueiro. Ou, como o
lente de Direito Constitucional da PUC de São Paulo podia preferir,
lana caprina.
Assim que findou sua passagem pela
presidência do STF, alegando ter sido ameaçado, Barbosa aposentou-se. A
chefa do Poder Executivo levou oito longos meses, quase uma gestação,
para substituí-lo. Os cheios de pruridos éticos na escolha para ser
membro tão poderoso de uma instituição que deveria ficar acima de
qualquer suspeita na vida toda – entre os quais o autor destas linhas –
insistiram na tecla de que o ilustre jurista tinha advogado quando
ainda era procurador do Estado do Paraná, o que fora proibido pela
Constituição. Usei fora e não era porque a mudança constitucional foi
usada como argumento para defendê-lo por entidades que não tinham por
que se meter no caso: a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a
Associação dos Procuradores do Estado do Paraná, que apresentaram
pareceres jurídicos a respeito.
Ao aprová-lo na sabatina, o Senado
estendeu aos pretendentes ao STF o princípio básico do direito de defesa
no Direito Romano in dubio pro reo (ou seja, na dúvida a favor
do réu) para os insignes candidatos à colenda Corte. Outro princípio
dos tempos de Roma – à mulher de César não basta ser honesta, tem de
parecer – foi às favas, como os escrúpulos do coronel Passarinho e a
modéstia daquele que seria seu colega e contendor no órgão máximo, o
ministro Gilmar Mendes. Escrúpulos e modéstia não são comuns no grupo em
tela.
Em benefício da dúvida velha de guerra, o
doutor foi liberado para exercer a extrema magistratura, mas seus
aliados também tiveram de superar outros óbices, hoje já não se sabendo
se mais ou menos espinhosos. Jurista respeitado por colegas de ofício de
ideologias opostas, ele se fez conhecido por duas posições que põem
eleitores e eleitos em pé de guerra. Esquerdista, militou em favor das
causas de movimentos sociais que passam ao largo da legalidade, como o
famigerado Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). E,
católico devoto, frequentador de missas dominicais com a mulher, com
quem é casado há longa data, esposou com fervor causas do Instituto
Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM), presidido pela gaúcha Maria
Berenice Dias. Aos senadores conservadores explicou que a Constituição
se sobreporia a eventuais posições políticas, partidárias ou referentes a
causas que defendeu, entre elas, a múltipla paternidade e o convívio
conjugal entre parceiros casados (ou não) de quaisquer opções sexuais.
Convincente, foi aprovado.
Críticos mais renitentes lembraram que o
professor foi remunerado por uma empresa controlada pelo Estado do
Paraná numa causa contra uma concorrente americana, ao arrepio da lei,
pois, sendo procurador, teria obrigação de defender a estatal estadual
gratuitamente. Como titular do mesmo escritório de advogados, prestou
serviços a uma empresa paraguaia contra a estatal binacional (meio
brasileira) Itaipu. O mesmo escritório atuou em causas julgadas no
Tribunal de Justiça do Paraná, no qual sua mulher, Rosana Amara Girardi
Fachin, é desembargadora.
Sua Excelência também postou vídeo de
apoio à candidata do PT à Presidência da República em 2010, Dilma
Rousseff, que o indicaria. Não há proibição legal para fazê-lo. Mas isso
criou mais problemas do que os outros seis pecados capitais, pois põe
em dúvida a imparcialidade. No STF, contudo, isso não é lana caprina e,
sim, favas contadas. Gilmar Mendes foi advogado-geral na gestão tucana
de Fernando Henrique. Ricardo Lewandowski é amigo antigo da família Lula
da Silva. Dias Toffoli foi advogado do PT e, depois da União nos
mandatos de Lula. E Alexandre de Moraes é duas vezes comprometido: com o
governador tucano de São Paulo, Geraldo Alckmin, de quem foi secretário
de Segurança Pública, e do presidente Michel Temer (PMDB-SP), de quem é
amigo pessoal e foi ministro da Justiça. Vai longe a data em que Marco
Aurélio Mello, primo de Collor e por ele nomeado para o STF, se declarou
impedido de participar da decisão final sobre o impeachment do parente e
benfeitor.
Aliás, quando o assunto foi aventado,
Gilmar Mendes, inimigo declarado da Lava Jato e da delação premiada em
geral, não apenas a dos irmãos Batista, recorreu ao princípio evangélico
do “atire a primeira pedra”, advertindo que muito poucos colegas não
contaram com a ajuda de empresários ou políticos investigados,
processados ou apenados. É difícil encontrar em Brasília quem não
saiba que o substituto de Joaquim Barbosa foi instruído por um
caríssimo gestor de crises contratado para o serviço não pelo ministro,
mas pela mesma mão que o indicou para o cargo, a de Dilma. Pode não ter
sido ilícito, mas não é nenhum indício de lisura a se exigir do membro
da cúpula de um poder que decide querelas judiciais em última instância.
Pode não ser o oitavo pecado, mas não deixa de ser uma mácula na
fantasia de Batman que o ministro usa no trabalho.
Antes de chegar a Fachin, contudo, a
generosíssima delação premiada de Saud & Batista foi negociada com o
MPF, com o beneplácito de seu chefe, Janot, E este, com informações
colhidas pelos depoimentos dos delatores, está entrando na História como
autor do primeiro libelo acusatório contra um presidente da República
no exercício da função. Os procuradores chefiados por Janot não
deram a menor importância à lacuna imensa existente na delação dos
irmãos Batista e do parceiro de Fachin na preparação da sabatina. Zé
Mineiro, cujas iniciais inspiraram o nome JBS com a qual a carne da
Friboi ganhou o mundo todo, começou sua vida num açougue de duas portas
no longínquo interior goiano. Seus filhos Joesley e Wesley são hoje os
mais bem-sucedidos produtores e vendedores de proteína animal do
planeta. Até a neta grávida de Lula, notória por sua sem-cerimônia no
uso de gestos obscenos, sabe que isso ocorreu mercê do uso de
empréstimos pra lá de beneméritos do BNDES.
Aos federais e procuradores que
negociaram sua delação a prêmio Joesley Batista contou que administrara
contas de Lula e Dilma, que movimentaram US$ 150 milhões, na Suíça. A
denúncia tem o valor de uma nota de R$ 3, pois o público pagante de seu
vertiginoso enriquecimento não ficou sabendo de um documento habilitado a
comprovar “no papel” a denúncia. É, digamos, uma delação de saliva, mas
sem prova de tinta.
Depois de acusar Temer, alvo
preferencial de uma ação controlada, [mais para flagrante preparado] que os sócios e amigos do
presidente chamam de “armação”, Janot, aprovado por Fachin, que
homologou os prêmios, pode até acusá-lo de ser réu confesso. Pois o
presidente nunca negou as circunstâncias delituosas de seu encontro
noturno em palácio com um bandido conhecido até em Tietê, sua cidade
natal. Pode ser que isso dê um pouco de substância probatória à denúncia
histórica do procurador. Mas não justifica o desinteresse dele pelas
origens da fortuna criminosa da família Batista, em si só um delito.
Temer vingou-se dele nomeando uma
desafeta, Raquel Dodge, para o lugar que Janot terá de abandonar em 17
de setembro. Mas, como Bento Carneiro, o vampiro brasileiro, Janot
prometeu uma “vingança maligna” até lá: “Enquanto houver bambu, vai ter
flecha”. Resta saber quem, Janot ou Fachin, é a flecha. E qual dos dois é
o bambu.
Publicado no Blog do Nêumanne, Jornalista, poeta e escritor, Política, Estadão