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sábado, 13 de agosto de 2016

Comida além do prazo, sujeira e desperdício no restaurante da Vila Olímpica

Correio teve acesso, com exclusividade, a depoimentos, fotos e conversas em grupos de WhatsApp que revelam o outro lado do"bandejão" que serve os 11 mil atletas dos Jogos do Rio

A propaganda é vistosa. Sempre é. Inclui referências ao maior restaurante do mundo, comparações desnecessárias com a quantidade de aviões ou de campos de futebol que cabem no local e adjetivos distribuídos em trincas. Dentro da Vila Olímpica, ou Vila dos Atletas, onde apenas competidores, integrantes das delegações e um grupo de 2 mil funcionários têm acesso, uma tenda com espaço para 5 mil pessoas sentadas e capacidade de servir 50 mil refeições por dia abriga, ainda que temporariamente, o maior bandejão da metade ocidental do mundo.
 Sujeira no banheiro dos funcionários, 50kg de feijão prontos para ser jogado fora e forno sujo

O equivalente a um terço desse local tem acesso ainda mais restrito. Na cozinha, despensa e restaurante só para funcionários, circula apenas quem trabalha por ali. Nenhum dos 18 mil moradores da Vila Olímpica tem acesso - da milionária tenista Eugenie Bouchard ao time inteiro de vôlei do Brasil, alguns dos moradores mais “ilustres”. Mas de lá, onde a comida dos protagonistas dos Jogos Olímpicos é preparada, surge um cardápio nada sugestivo, que inclui sujeira, desperdício, falta de alimentos e de material, além de comida fora do prazo máximo estipulado para estar disponível para consumo.

No Rio, o Correio Braziliense teve acesso, com exclusividade, a depoimentos, conversas em grupos de WhatsApp e a uma série de fotos, todo o material recebido de funcionários do restaurante, que revelam uma situação desconhecida por quem fica hospedado na Vila dos Atletas.

O principal problema está no trato com o alimento servido. Aparentemente, o restaurante da Vila Olímpica ainda peca em um dos princípios básicos de organização, limpeza e compra de produtos para o preparo das refeições. Ao mesmo tempo em que há um desperdício sistemático de comida já preparada, os funcionários reclamam da falta de vegetais, frutas, óleo de cozinha e sal, por exemplo.

Como é possível ver no material colhido pela reportagem, o resultado dessa desorganização vai do preocupante ao inusitado. Uma das fotos obtidas pelo Correio mostra uma funcionária do restaurante picotando dezenas de saquinhos de sal para serem utilizados em grande proporção porque não havia sacos de sal em quilos. Em outro caso, uma troca de mensagens revela a preparação de um feijão que deveria ser vegetariano feito com linguiça.


Os funcionários ouvidos pela reportagem, que só aceitaram falar desde que não tivessem a identidade revelada, relataram, ainda, outro caso grave: comida à disposição dos atletas fora do prazo que podem ficar expostas depois de preparadas. Algumas das refeições, depois de prontas, podem ficar até seis horas - e não mais que isso - disponíveis para consumo. De acordo com duas pessoas que trabalham no restaurante, esse prazo vem sendo desrespeitado em várias ocasiões. Uma das mensagens trocadas entre um dos chefes de seção e os demais funcionários constata o problema: “Já tomei notificação hoje! Ou vocês arrumam essa p… ou eu não sei… Fez, coloca etiqueta. (...) 5 hot box (caixa térmica) com comida vencida. Já tenho muita coisa para tomar conta do que tomar conta de etiqueta”.

Outra premissa básica de um ambiente em que se prepara comida, a limpeza, também enfrenta problemas no restaurante da Vila Olímpica. São fornos sujos, que “contaminam” outros alimentos com restos queimados, banheiros em condições distantes do ideal, e funcionários dormindo no chão. Não há pessoal suficiente para fazer a limpeza dessa área, reclama um dos entrevistados pelo Correio, que disse também ter sido solicitado - e se negado - a limpar o chão.

Quem estava nas escalas do restaurante também reclamou muito da falta de produtos, da cobrança incompatível com o material oferecido para o trabalho e da qualidade de alguns dos alimentos comprados, especialmente o feijão servido aos atletas. Fotos da separação do feijão a ser servido aos 18 mil integrantes de mais de 200 delegações olímpicas também mostra quão complicado era o trabalho de “limpeza” do produto antes de cozinhá-lo, com uma grande quantidade de pequenas pedras dentro do saco.

Outra das conversas trocadas entre funcionários revela que o problema de escassez, de fato, atingiu o restaurante: “Tivemos reunião sobre esse assunto e trarão carnes para três dias. (...) Hoje, tive uma conversa com a diretora geral de suprimentos sobre a falta de insumos e ela me garantiu a entrega de todos os produtos que necessitamos”.

Além disso, os funcionários que aceitaram conversar com o Correio relataram ainda casos de jornada de trabalho muito além do combinado. Um deles ironizou, ao dizer que a empresa responsável estava “acreditando seriamente que se trabalharia de graça nos Jogos Olímpicos”, referindo-se a horas extras que ultrapassavam - e muito - o que havia sido previamente combinado. O diretor de Comunicação da Rio 2016, Mário Andrada, reconheceu parte dos problemas e admitiu ser possível situações equivocadas com horários e escalas (leia reportagem abaixo).

Rio 2016 atribui problemas a ajustes no início da operação
O diretor de Comunicação da Rio 2016, Mário Andrada, disse, ao Correio, que o início dos preparativos para a chegada dos atletas aos Jogos Olímpicos teve, realmente, “momentos conturbados”. “Os primeiros dias, especialmente, se mostraram mais difíceis em vários aspectos”, reconheceu. “É uma operação que envolve uma série de desafios, então acaba sendo natural alguns problemas”, explicou.

Em relação às jornadas de trabalho esticadas, Andrada ressaltou que havia uma pressão da própria equipe em fazer tudo funcionar corretamente, o que pode ter resultado em distorções do horário. “Estamos todos trabalhando muito mais horas do que deveríamos. Eu estou, você certamente está, é o tipo de coisa que acontece.”





Funcionária cortando vários saquinhos de sal para fazer uma quantidade maior porque eles estavam sem sal em quilo

Quanto ao desperdício de comida no restaurante da Vila Olímpica, o diretor de Comunicação da Rio 2016 admitiu existir essa possibilidade: “Não podemos, de jeito nenhum, ter comida fora da validade. Estão todos de olho na gente. Então, é o seguinte: se você fez uma quantidade X de arroz e ela não foi consumida no período certo, é certeza que será jogada fora”. Ele recordou um evento-teste, antes dos Jogos, em que precisou excluir uma grande quantidade de alimentos. “Aconteceu. Não é o ideal, mas aconteceu.”

Mário Andrada explicou ainda que a relatada falta de suprimentos e materiais pode ter ocorrido por um erro de cálculo no início da chegada dos atletas à Vila Olímpica. “Estávamos ajustando o ‘canhão’ e esse tipo de coisa leva um certo tempo.” E concluiu: “já fizemos várias melhorias, muitas a pedido dos próprios atletas, desde que eles começaram a chegar”. (AB)


Fonte: Correio Braziliense