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sábado, 1 de abril de 2023

Burocracia - “Corre que é cilada, Bino!”: a nova guilhotina da Receita Federal - Crônicas de um Estado Laico

Gazeta do Povo - Vozes

 
Se você tem mais de 40 anos, vai lembrar de Carga Pesada, seriado famoso com Antônio Fagundes e Stenio Garcia nos papéis dos caminhoneiros Pedro e Bino. Sempre metidos em aventuras e, não raro, confusões. Umas criadas por eles mesmos, outras que fazem parte daquelas coisas da vida às quais estamos todos sujeitos.

Pois na “estrada da vida” os religiosos não têm um dia de descanso no Brasil. Às vezes sofrem por sua própria desorganização – e isto é mais comum do que parece. Em outras, acabam sendo alvos, seja de movimentos ideológicos, ou do uso ideologizado de operadores institucionais (até o Ministério Público entra nessa roda, infelizmente). Mas hoje vamos falar é de árvore legal.

A nova é a revogação da instrução normativa da Receita Federal que dispensava a necessidade de inscrição como CNPJ de filial para pequenos pontos de evangelização. Isto significa que, agora, até uma pecinha com dez pessoas reunidas para um culto em qualquer lugar remoto será obrigada a constituir um CNPJ! A obrigatoriedade de cadastro de CNPJ filial para todas as congregações e/ou pontos de trabalho das organizações religiosas é inconstitucional e ilegal diante do artigo 19, I da Constituição brasileira, que veda o embaraço ao funcionamento das igrejas

CNPJ é a abreviação de Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica
Trata-se de um registro obrigatório para todas as empresas, organizações e entidades que desejam atuar legalmente no Brasil. 
Esse registro é emitido pela Receita Federal e funciona como uma identidade fiscal da organização/empresa. 
No caso das organizações religiosas brasileiras, o CNPJ é de extrema importância, pois é por meio dele que a instituição consegue realizar transações financeiras, efetuar compras de bens imóveis e móveis e cumprir com suas obrigações fiscais.
Além disso, o CNPJ também é exigido para a abertura de contas bancárias e para a contratação de funcionários, dentre outros.

É importante dizer que, embora os templos de qualquer culto sejam imunes de impostos, eles ainda têm obrigações fiscais acessórias a cumprir, como a declaração de Imposto de Renda e a emissão de recibos de doações e prebenda (pagamento de seus líderes). Por isso, o CNPJ se torna essencial para que a organização religiosa possa cumprir com todas as suas obrigações legais e administrativas. Aliás, em nosso livro, Direito Religioso: questões práticas e teóricas (Vida Nova, 2020, p. 302), explicamos sobre outra dessas obrigações acessórias da organização religiosa, a Escrituração Contábil Fiscal, que em conjunto com o CNPJ são necessárias para o seu dia a dia:“Não vemos nenhuma ilegalidade nesse dispositivo. Na verdade, as organizações religiosas devem se organizar perante o Estado e a sociedade, tendo em vista a duplicidade de sua natureza, a primeira, espiritual (organismo), e a segunda, temporal (organização). A igreja deve ser passível de identificação até para que possa, com o Estado, cooperar em busca do bem comum do ser humano. Assim, tanto o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas quanto a entrega da Escrituração Contábil Fiscal são necessários para tal fim. De outra banda, quando compra, vende ou contrata, necessita dessa capacidade de representação temporal e civil.”

Então, ter CNPJ não é um problema, sendo apenas uma identificação da organização religiosa perante a comunidade jurídica. A novidade é a obrigatoriedade de cadastro de CNPJ filial para todas as congregações e/ou pontos de trabalho das organizações religiosas.

Por muito tempo não havia essa necessidade, mas, com a entrada em vigor da nova Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil 2.119/2022 e a revogação expressa da INRFB 1.897/2019, os estabelecimentos de organizações religiosas, mesmo muito pequenos e desprovidos de qualquer tipo de estrutura, inclusive não possuindo autonomia administrativa e sem exercer gestão orçamentária, são novamente obrigados a serem registrados no CNPJ, como filial.

Portanto, as organizações religiosas deverão providenciar o registro desses locais perante a Receita, com auxílio de contador habilitado. Para tal, deverão realizar assembleia, consignar em ata a existência de tal filial, posteriormente registrar no respectivo Cartório de Pessoas Jurídicas em que a sede está registrada e, ainda, pedir o CNPJ de filial, por meio de DBE, junto à Receita.

Mais custo financeiro e burocracia. Entendemos que tal exigência é inconstitucional e ilegal diante do artigo 19, I da Constituição brasileira, que veda o embaraço ao funcionamento das igrejas e culto, bem como do artigo 5.º, VI, afirmativo da proteção dos cultos; e do Decreto 119-A/1890, que assegura a mesma garantia
Qualquer tipo de multa da Receita nesse sentido é passível de ação anulatória na Justiça. 
O problema é que movimentar o Judiciário também gera custos para a entidade religiosa; então, como diria Pedro: é uma cilada, Bino!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina,
colunistas - Gazeta do Povo - Crônicas de um Estado Laico