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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A breve vida de um bebê com microcefalia expõe a fragilidade da saúde no Brasil



A história do pequeno Isaac mostra que o país não está preparado para cuidar das vítimas da microcefalia associada ao vírus da zika
O frentista Wallynson Dantas despertou sonolento na madrugada da quinta-feira, dia 18. Por volta de 2 horas da manhã, levantou antes que seu bebê acordasse faminto. Como fez nos últimos três meses, seguiu até o berço branco de madeira, colocado propositalmente ao lado da cama do casal, e curvou o tronco para a frente a fim de chegar mais perto do filho. Tocou a fralda de José Isaac e percebeu que havia algo diferente. Ao pousar sua mão sobre os braços e as pernas da criança, sentiu seu corpinho frio e desfalecido.

Isaac não estava respirando. Wallynson chacoalhou a mulher, a dona de casa Kelly Sabrina da Silva, e com o filho no colo os dois correram até o hospital de Ipaumirim, a pequena cidade onde vivem, no interior do Ceará. Isaac nascera prematuro no dia 30 de outubro do ano passado. Com o diagnóstico de microcefalia severa, era um bebê frágil e miúdo. Sua breve vida de 3 meses e 19 dias expõe como o Brasil está despreparado para enfrentar uma das piores tragédias da saúde pública das últimas décadas.

Aos 23 anos, Kelly foi mãe de primeira viagem. Cumpriu o roteiro típico das jovens que sonham em vestir branco e construir uma família: casou-se em janeiro do ano passado e engravidou na sequência. Por causa da confusão com os preparativos para seu grande dia, descuidou-se do anticoncepcional e acabou por conceber Isaac sem nenhum esforço

Embora não tenha sido minuciosamente planejada, a chegada do primeiro filho foi comemorada com entusiasmo. Em várias ocasiões, a família brincou de imaginar como seria o rostinho do bebê. Uma disputa entre os avós paternos e maternos pretendeu definir para qual time de futebol o pequeno Isaac torceria, se para o Flamengo ou para o Vasco.

Pelas regras do Sistema Único de Saúde (SUS), é responsabilidade das prefeituras oferecer atendimento às gestantes de bebês com microcefalia sempre com apoio e orientação do Ministério da Saúde. Às esferas municipal, estadual e federal cabem a avaliação, a notificação e o atendimento dessas crianças. Kelly teve seu pré-natal feito no posto de saúde da prefeitura de Ipaumirim. Aos quatro meses de gestação, procurou a mesma unidade com dores nas juntas, febre e manchas vermelhas pelo corpo. Alguns de seus vizinhos e parentes apresentaram os mesmos sintomas. 

Àquela altura, o vírus zika ainda não apavorava as mães e os profissionais de saúde. Ninguém suspeitou, portanto, que se tratava de uma ameaça ao bebê. Kelly saiu de lá com o diagnóstico de alergia e um anti-histamínico. Dois meses depois, a ultrassonografia morfológica não apontou nenhuma alteração no bebê. Só no exame seguinte, feito num laboratório particular e por conta própria, o médico enxergou que havia algo errado com o desenvolvimento do feto. O diagnóstico definitivo de microcefalia veio de duas ultrassonografias mais tarde, pelas mãos de um ginecologista de um hospital estadual da cidade vizinha Icó. Com medo de perder seu filho, Kelly chorou.

Com um barrigão de oito meses e atordoada pela notícia da má-formação de seu primogênito, Kelly se apressou para chegar à prefeitura de Ipaumirim na manhã de 28 de outubro. Levava com ela a ordem médica escrita em letras garrafais: “URGENTE, encaminhar a paciente para Fortaleza”. Como estava com a placenta abaixo do útero, e por isso podia ter Isaac antes do tempo, entrou para a categoria de grávida de risco

A 430 quilômetros de Fortaleza, numa cidadezinha de 12 mil habitantes sem nem mesmo um aparelho de ultrassonografia, Kelly precisava de um veículo para transportá-la a um hospital mais bem equipado da capital. Um carro da prefeitura estacionou na porta de sua casa só 38 horas depois do pedido. Na frieza da vida prática, a prefeitura afirma não ter condições financeiras para atender a toda a demanda da cidade. “Fretar um carro custaria R$ 800”, afirma Ecilda Ferreira, coordenadora da área de transporte. “Se essa mãe era mesmo uma gestante de alto risco, não poderia ter sido encaminhada para tão longe”, afirma Alberto Beltrame, secretário nacional de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde. “Se houve alguma falha em algum elo, precisamos saber para corrigir.” 

Naquela madrugada de 30 de outubro, ela atravessou praticamente todo o Estado do Ceará em trabalho de parto. “Sentia Isaac vindo e fechava as pernas”, diz Kelly. “Ele vinha, eu fazia voltar.” Não havia enfermeiros ou médicos presentes. Sua mãe ocupava o assento da frente do Volkswagen Up branco. Kelly dividia com o marido o estreito banco de trás do veículo. Numa estrada de mão única, pouquíssimo movimentada tarde da noite, a viagem começou sem sobressaltos, além da agonia da situação. Até ali, os riscos pareciam corriqueiros – no máximo, um jumento poderia atravessar a pista no escuro. Mas, a 385 quilômetros do destino final, a bolsa de Kelly estourou e molhou sua roupa. Kelly até manteve segredo por alguns quilômetros, na tentativa de poupar a mãe, vítima recente de um acidente vascular cerebral (AVC). Mas logo a dor a tomou. A família se despede de Isaac. O "PRINCIPE" que viveria 5 minutos, segundo o médico, viveu 3 meses.

Junto com o líquido da placenta, vieram as contrações em intervalos mais curtos. A cada cinco minutos. Depois de três em três minutos. Esgotada, ela se rendeu a um mantra, baixinho – “eu não vou aguentar, eu não vou aguentar” –, e pediu à mãe e ao marido que, “se alguma coisa” acontecesse com ela, dessem um jeito de salvar seu filho. O marido, Wallynson, de 24 anos, fez tudo o que conseguiu naquele momento: segurou firme a mão de Kelly e massageou sua barriga vez ou outra, na tentativa de aliviar a dor. “Meu maior medo era perder os dois”, diz. Maria Socorro Pereira da Silva, avó de Isaac, evangélica, resignou-se numa oração silenciosa. “Deus, se eu for merecedora de minha filha e meu neto serem salvos, eu aceito. Se eu for merecedora de um só, aceito também.”

No volante, o motorista Alcileno Santana se dividia entre acalmar a paciente e se concentrar na estrada. A experiência de 14 anos dirigindo uma ambulância o deixou confortável para receitar umas gotas de Buscopan para a paciente. Ela relaxou e cochilou, mas acordou com contrações ainda mais fortes. “Comecei a pisar, a andar mais rápido”, diz Alcileno, ao lembrar que acelerou a 135 quilômetros por hora, seu limite de segurança. “Pensei: se não tiver jeito, eu faço o parto aqui.” Já havia amanhecido quando, às 7h45, o carro estacionou na frente do hospital. Kelly foi levada de cadeira de rodas até a sala de cirurgia. Às 8h10, deu à luz a Isaac, em parto normal, como sempre sonhou.

Isaac nasceu com 1,495 quilo e problemas respiratórios. Não chorou. Por alguns curtos segundos, permaneceu no peito de Kelly, para logo ser encaminhado à Unidade de Terapia Intensiva (UTI). O médico não lhe deu “nem cinco minutos de vida”. Aconselhou que todos se despedissem do recém-nascido – episódio que Kelly só soube mais tarde. O pai foi o primeiro a vê-lo na incubadora. Kelly esteve diante de seu filho pela segunda vez apenas cinco dias depois do nascimento. “Quando eu o vi tão pequenininho, com uma sonda na boca e um capacetinho de oxigênio, minha vontade era só de chorar”, diz.  

Durante um mês e 22 dias, Kelly dividiu um quarto de hospital com outras mulheres. Ao lado da cama de cada uma das mães, havia um berço com seu respectivo filho. O lado de Kelly estava vazio. “A cada bercinho que chegava, eu pensava que era o Isaac vindo da UTI”, afirma.

Com a alta médica, a família retomou o fôlego para de novo sonhar com um futuro menos sombrio. Contrataram um plano de saúde para Isaac por R$ 230, pagos pela tia materna, e se concentraram em uma rotina de buscas por terapias para auxiliar o desenvolvimento do bebê. O primeiro teste de visãouma das recomendações do protocolo do Ministério da Saúdeeles perderam por falta de transporte. O Brasil tem 1.543 serviços públicos de reabilitação. Esses números não proporcionaram nenhum apoio a Kelly. 

Mesmo na rede particular, as possibilidades eram restritas. A fisioterapeuta atendia numa cidade a meia hora de Ipaumirim. Para ir à pediatra, viajavam duas horas. 

Fonoaudiólogo só havia a duas horas e meia dali. Em casa, Kelly desenvolveu técnicas próprias: acalmava Isaac com o balanço da rede, estimulava sua visão com as cores vivas da Galinha Pintadinha e a sucção do leite com uma “chuquinha”. No dia 30 de cada um dos três últimos meses, a família festejou os cinco minutos a mais da vida de Isaac com bolo e decoração.

Na quinta-feira, dia 18, um dia abafado em Ipaumirim, um pequeno caixão branco, escorado por dois banquinhos de plástico, ocupou o centro da sala da família. O atestado de óbito, em uma burocrática folha amarela cheia de campos, afirma que Isaac morreu de “parada cardiorrespiratória em consequência de microcefalia severa”. Entrará para a estatística do Ministério da Saúde como mais um dos até agora 120 bebês que morreram no Brasil em decorrência da má-formação desde 22 de outubro passado, data do início das investigações.

Parentes, amigos, conhecidos e curiosos encheram a casa da família para velar o bebê. Pela manhã, antes de colocar Isaac no pequeno caixão branco, Kelly repetiu um cuidado que diariamente tinha com o filho: besuntou seu corpinho miúdo com creme hidratante, agora pela última vez. Ajoelhou-se ao lado do bebê coberto por flores brancas e chorou desconsolada
Sentado na cama do casal, o pai, Wallynson, aproximou as roupinhas de Isaac do nariz, para tentar guardar na memória o cheiro do efêmero filho, que nunca mais conseguirá sentir. Perto das 5 da tarde, um cortejo triste seguiu a pé até o cemitério da cidade, puxado por um carro de som que tocava músicas evangélicas. À beira da lápide, a tia e os avós fizeram um discurso singelo em memória à curta vida de Isaac. Uma placa de madeira, feita originalmente para a comemoração de seu quarto mês de vida, prestou a homenagem derradeira ao menino: “Isaac, nosso príncipe”.

Fonte: Revista Época