A
história do pequeno Isaac mostra que o país não está preparado para cuidar das
vítimas da microcefalia associada ao vírus da zika
O frentista Wallynson Dantas despertou sonolento na
madrugada da quinta-feira, dia 18. Por volta de 2 horas da manhã, levantou antes que
seu bebê acordasse faminto. Como fez nos últimos três meses, seguiu até o berço
branco de madeira, colocado propositalmente ao lado da cama do casal, e curvou
o tronco para a frente a fim de chegar mais perto do filho. Tocou a fralda de
José Isaac e percebeu que havia algo diferente. Ao pousar sua mão sobre os
braços e as pernas da criança, sentiu seu corpinho frio e desfalecido.
Isaac não
estava respirando. Wallynson
chacoalhou a mulher, a dona de casa Kelly Sabrina da Silva, e com o filho no
colo os dois correram até o hospital de Ipaumirim, a pequena cidade onde vivem, no interior do Ceará. Isaac nascera
prematuro no dia 30 de outubro do ano passado. Com o diagnóstico
de microcefalia severa, era um bebê frágil e miúdo. Sua breve vida de 3 meses e 19 dias expõe como o Brasil está despreparado para enfrentar uma das
piores tragédias da saúde pública das últimas décadas.
Aos 23 anos, Kelly foi mãe de
primeira viagem. Cumpriu
o roteiro típico das jovens que sonham em vestir branco e construir uma família: casou-se em janeiro do ano passado e
engravidou na sequência. Por causa da confusão com os preparativos para seu
grande dia, descuidou-se do anticoncepcional e acabou
por conceber Isaac sem nenhum esforço.
Embora não tenha sido
minuciosamente planejada, a chegada do primeiro filho foi comemorada com
entusiasmo. Em várias ocasiões, a família brincou de imaginar como seria o
rostinho do bebê. Uma disputa entre os
avós paternos e maternos pretendeu definir para qual time de futebol o
pequeno Isaac torceria, se para o
Flamengo ou para o Vasco.
Pelas
regras do Sistema Único de Saúde (SUS), é
responsabilidade das prefeituras oferecer atendimento às gestantes de bebês com
microcefalia – sempre com apoio e
orientação do Ministério da Saúde. Às esferas municipal, estadual e federal
cabem a avaliação, a notificação e o atendimento dessas crianças. Kelly teve
seu pré-natal feito no posto de saúde da prefeitura de Ipaumirim. Aos quatro
meses de gestação, procurou a mesma unidade com dores nas juntas, febre e
manchas vermelhas pelo corpo. Alguns de seus vizinhos e parentes
apresentaram os mesmos sintomas.
Àquela
altura, o vírus zika
ainda não apavorava as mães e os profissionais de saúde. Ninguém suspeitou, portanto, que se tratava de uma ameaça ao
bebê. Kelly saiu de lá com o diagnóstico de alergia e um anti-histamínico.
Dois meses depois, a ultrassonografia morfológica não apontou nenhuma alteração
no bebê. Só no exame seguinte, feito num
laboratório particular e por conta própria, o médico enxergou que havia
algo errado com o desenvolvimento do feto. O diagnóstico definitivo de
microcefalia veio de duas ultrassonografias mais tarde, pelas mãos de um
ginecologista de um hospital estadual da cidade vizinha Icó. Com medo de perder
seu filho, Kelly chorou.
Com
um barrigão de oito meses e atordoada pela notícia da má-formação de seu
primogênito, Kelly se
apressou para chegar à prefeitura de Ipaumirim na manhã de 28 de outubro. Levava com ela a ordem médica escrita em letras garrafais:
“URGENTE, encaminhar a paciente para Fortaleza”. Como
estava com a placenta abaixo do útero, e por isso podia ter Isaac antes do
tempo, entrou para a categoria de grávida de risco.
A 430 quilômetros de
Fortaleza, numa cidadezinha de 12 mil habitantes sem nem mesmo um aparelho de
ultrassonografia, Kelly precisava de um
veículo para transportá-la a um hospital mais bem equipado da capital. Um
carro da prefeitura estacionou na porta de sua casa só 38 horas depois do pedido.
Na frieza da vida prática, a prefeitura afirma não ter
condições financeiras para atender a toda a demanda da cidade. “Fretar um carro custaria R$ 800”, afirma
Ecilda Ferreira, coordenadora da área de transporte. “Se essa mãe era mesmo uma gestante de alto risco, não poderia ter sido
encaminhada para tão longe”, afirma Alberto Beltrame, secretário nacional
de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde. “Se houve alguma falha em algum
elo, precisamos saber para corrigir.”
Naquela
madrugada de 30 de outubro, ela atravessou praticamente todo o Estado do Ceará
em trabalho de parto. “Sentia Isaac vindo e fechava as pernas”, diz Kelly.
“Ele vinha, eu fazia voltar.” Não havia enfermeiros
ou médicos presentes. Sua mãe ocupava o assento da frente do Volkswagen
Up branco. Kelly dividia com o marido o estreito banco de trás do veículo. Numa estrada de mão única, pouquíssimo movimentada tarde da
noite, a viagem começou sem sobressaltos, além da agonia da situação.
Até ali, os riscos pareciam corriqueiros – no máximo, um
jumento poderia atravessar a pista no escuro. Mas, a 385 quilômetros do destino final, a bolsa de Kelly estourou e molhou
sua roupa. Kelly até manteve segredo por alguns
quilômetros, na tentativa de poupar a mãe, vítima recente de um acidente
vascular cerebral (AVC). Mas logo
a dor a tomou. A família se despede de Isaac. O
"PRINCIPE" que viveria 5 minutos, segundo o médico, viveu 3 meses.
Junto com o líquido da placenta,
vieram as contrações em intervalos mais curtos. A cada cinco minutos. Depois de
três em três minutos. Esgotada, ela se rendeu a um mantra, baixinho – “eu
não vou aguentar, eu não vou aguentar” –, e pediu à mãe e ao marido que, “se alguma coisa” acontecesse com ela,
dessem um jeito de salvar seu filho. O marido, Wallynson, de 24 anos, fez tudo
o que conseguiu naquele momento: segurou firme a mão de Kelly e massageou sua
barriga vez ou outra, na tentativa de aliviar a dor. “Meu maior medo era perder os dois”, diz. Maria Socorro Pereira da
Silva, avó de Isaac, evangélica, resignou-se numa oração silenciosa. “Deus, se eu for merecedora de minha filha e
meu neto serem salvos, eu aceito. Se eu for merecedora de um só, aceito também.”
No
volante, o motorista Alcileno Santana se dividia entre
acalmar a paciente e se concentrar na estrada. A experiência de 14 anos
dirigindo uma ambulância o deixou confortável para receitar umas gotas de
Buscopan para a paciente. Ela relaxou e cochilou, mas acordou com contrações
ainda mais fortes. “Comecei a pisar, a andar mais rápido”, diz Alcileno,
ao lembrar que acelerou a 135 quilômetros por hora, seu limite de segurança. “Pensei: se não tiver jeito, eu faço o parto
aqui.” Já havia amanhecido quando, às 7h45, o carro estacionou na frente do
hospital. Kelly foi levada de cadeira de
rodas até a sala de cirurgia. Às 8h10, deu à luz a
Isaac, em parto normal, como sempre sonhou.
Isaac
nasceu com 1,495 quilo e problemas respiratórios. Não chorou. Por
alguns curtos segundos, permaneceu no peito de Kelly, para logo ser encaminhado
à Unidade de Terapia Intensiva (UTI). O médico não lhe deu “nem cinco minutos de vida”. Aconselhou que todos se despedissem do recém-nascido –
episódio que Kelly só soube mais tarde. O pai foi o primeiro a vê-lo na
incubadora. Kelly esteve diante de seu filho pela segunda vez apenas cinco dias
depois do nascimento. “Quando eu o vi tão
pequenininho, com uma sonda na boca e um capacetinho de oxigênio, minha vontade
era só de chorar”, diz.
Durante um
mês e 22 dias, Kelly dividiu um quarto de hospital com outras mulheres. Ao
lado da cama de cada uma das mães, havia um berço com seu respectivo filho. O
lado de Kelly estava vazio. “A cada
bercinho que chegava, eu pensava que era o Isaac vindo da UTI”, afirma.
Com a
alta médica, a família retomou o fôlego para de novo sonhar com um futuro menos
sombrio. Contrataram
um plano de saúde para Isaac por R$ 230, pagos pela tia materna, e se
concentraram em uma rotina de buscas por terapias para auxiliar o desenvolvimento
do bebê. O primeiro teste de visão –
uma das recomendações do protocolo do
Ministério da Saúde – eles perderam
por falta de transporte. O Brasil tem 1.543
serviços públicos de reabilitação. Esses números não proporcionaram nenhum
apoio a Kelly.
Mesmo na rede particular, as
possibilidades eram restritas. A fisioterapeuta atendia
numa cidade a meia hora de Ipaumirim. Para ir à
pediatra, viajavam duas horas.
Fonoaudiólogo só
havia a duas horas e meia dali. Em
casa, Kelly desenvolveu técnicas próprias: acalmava Isaac com o balanço da
rede, estimulava sua visão com as cores vivas da Galinha Pintadinha e a sucção
do leite com uma “chuquinha”. No dia
30 de cada um dos três últimos meses, a família festejou os cinco minutos a
mais da vida de Isaac com bolo e decoração.
Na
quinta-feira, dia 18, um dia abafado em Ipaumirim, um pequeno caixão branco,
escorado por dois banquinhos de plástico, ocupou o centro da sala da família. O atestado de óbito, em
uma burocrática folha amarela cheia de campos, afirma que Isaac morreu
de “parada cardiorrespiratória em
consequência de microcefalia severa”. Entrará para a estatística do
Ministério da Saúde como mais um dos até agora 120 bebês que morreram no Brasil
em decorrência da má-formação desde 22 de outubro passado, data do início das
investigações.
Parentes, amigos, conhecidos e
curiosos encheram a casa da família para velar o bebê. Pela manhã, antes de colocar
Isaac no pequeno caixão branco, Kelly repetiu um cuidado que diariamente tinha
com o filho: besuntou seu corpinho miúdo com creme
hidratante, agora pela última vez. Ajoelhou-se
ao lado do bebê coberto por flores brancas e chorou desconsolada.
Sentado
na cama do casal, o pai, Wallynson, aproximou as roupinhas de Isaac do nariz,
para tentar guardar na memória o cheiro do efêmero filho, que nunca mais
conseguirá sentir. Perto das 5 da tarde, um cortejo triste seguiu a pé até o
cemitério da cidade, puxado por um carro de som que tocava músicas evangélicas.
À beira da lápide, a tia e os avós fizeram um discurso singelo em memória à
curta vida de Isaac. Uma placa de madeira, feita originalmente para a
comemoração de seu quarto mês de vida, prestou a homenagem derradeira ao
menino: “Isaac, nosso príncipe”.
Fonte: Revista Época