Dia destes, a
presidente Dilma Rousseff foi a Maricá, na Grande Rio, inaugurar dois conjuntos
residenciais com 2.932 casas populares de seu programa “Minha Casa, Minha
Vida”, terminadas
às pressas em bairros sem água, luz nem saneamento. A um deles denominou
Carlos Marighella, o facínora que ganhou aura de mártir na hagiografia comunista. O outro recebeu o nome
de Carlos Alberto Soares de Freitas. Nenhum destes homens teve relação
alguma com as comunidades contempladas. Ambos figuram no panteão particular da
dona “presidenta”.
O primeiro dispensa
apresentações. Tido
como inimigo número um da ditadura militar por ter chefiado grupos armados para
enfrentá-la, ganhou notoriedade suficiente para ter o nome reconhecido por algum
habitante mais velho do lugar. Nenhum dos codinomes usados pelo segundo –
Beto, Breno, Cláudio, Gustavo, Melo, Sérgio, Fernando, Fernando Sá de Souza ou
Fernando Ferreira –, contudo, pode ser identificado em Maricá, no Rio de
Janeiro ou no Brasil. É bem provável que na solenidade de inauguração, que
Dilma resolveu usar como evento da agenda positiva para sair da crise, somente
esta tinha alguma ideia de quem ele tinha sido.
nto que este homenageado deu de próprio
punho à Justiça Militar quando estava preso pela ditadura, em 28 de fevereiro
de 1971. E
está disponível no site do jornal O Globo há três anos. Na primeira vez, Dilma Vana Roussef (sic) Linhares (“Wanda”) foi definida como
uma “ampliação” do grupo que ele tinha fundado, a Organização
Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), crítica ao Partidão
Comunista. Na segunda, como parte do grupo que “rachou” para criar a
Dissidência da Polop, bando armado que ganhou notoriedade como Comando de
Libertação Nacional (Colina). E, por fim, ele contou que ela fez parte
do que se intitulava “comando”, enquanto ele próprio passou a figurar em
outro compartimento, chamado de “área”.
É provável que Beto,
como era chamado pelos amigos, ou Breno, codinome que usou por mais tempo na
luta armada, tenha deixado uma forte impressão entre as pessoas com as quais
conviveu. Em 1965, o historiador José Murilo de Carvalho, membro da Academia
Brasileira de Letras (ABL), cursou com ele o último ano da Faculdade de
Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Participaram juntos de
ações de apoio a populações carentes e disputaram a indicação de orador da
formatura da turma. Ganhou a disputa na banca o autor de Os
bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. Mas a turma
preferia Beto. “Ele era carismático e sua estampa impressionava as moças”,
narrou o historiador.
Beto também foi
dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e fundou, em 1969, a
Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Foi preso em 15 de
fevereiro de 1971 no Rio e nunca mais foi visto. Dado oficialmente
como desaparecido, seu corpo até hoje não foi encontrado. Inês Etienne Romeu,
única sobrevivente da Casa da Morte, centro de tortura e execuções em
Petrópolis, morta em abril passado, ouviu de seus carcereiros que ele tinha
sido visto lá. O ex-sargento Ubirajara Ribeiro de Souza, o Zezão, que participava das
torturas, por exemplo, lhe segredou: “Seu amigo esteve aqui”. A frase
serviu de título à biografia dele, lançada pela jornalista Cristina Chacel
em 2012.
Qualquer curioso
que se dispuser a saber quem foi o homenageado pela ex-companheira de armas em
Maricá encontra
seu perfil ao abrir com seu nome civil, no Google, a série Biografias
da Resistência no portal Memórias da Ditadura. Logo abaixo de seus dados
biográficos encontram-se a notícia do lançamento da biografia e links contendo
seu prontuário no DOPS e a “íntegra do depoimento de Beto em 1971”, além
do dossiê “Mortos e desaparecidos políticos no Brasil”.
É detalhado o
depoimento do homenageado em Maricá no qual Dilma (“Wanda”) foi citada, encimado
por duas datas: “30/04/2011 0:00 / Atualizado
03/11/2011 22:52”. Tudo indica que se trata de uma delação obtida
após o depoente ter sido submetido à dor além do limite suportável pela prática
de torturas nos porões da ditadura. Isso não faz dele mais herói nem um
canalha. Nenhum ser humano submetido à tortura deve ser vilipendiado por ter
contado aos carrascos tudo o que sabia. Beto, como seus comandados, tinha
instruções quanto a isso. Resistiam enquanto pudessem até faltarem
ao primeiro ponto (encontro), dando ciência de que
tinham “caídos” e
oportunidade para que outros não fossem presos.
Dilma (“Wanda”)
deveria saber disso. Sua empáfia ao repetir que nunca delatou e seu
desprezo manifesto por
quem tenha delatado sob tortura são manifestações de desumanidade e falta de
noção dos limites da dor. [Como
Dilma pode saber os limites da dor, já que nunca foi torturada? O que ela
sabia, entregou de graça, na manha, e alega ter sido torturada apenas
para posar de heroína, quando seu papel foi o de reles traidora da Pátria.] Se foi torturada e não delatou, como
se jacta, deveria perceber que detratar um delator como Beto é aceitar a
tortura e justificar o torturador.
Há, ainda, na tentativa que ela
fez de desqualificar quem dá informações úteis ao Ministério Público Federal, à
Polícia Federal e à Justiça Federal em Curitiba, na Operação Lava
Jato, desconhecimento expresso de uma lei que ela mesma assinou. Os que são
chamados de “delatores
premiados”
no caso são apenas “colaboradores da Justiça”, assim designados
nas leis que instituíram o método: a 9.807, assinada em 1999 por Fernando
Henrique Cardoso e seu ministro da Justiça, Renan Calheiros; e a 12.850, de
2013, da lavra de Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo, Luiz Inácio Adams e
Jorge Hage.
Não faz também
sentido confundir “colaborador” (em nenhuma das leis se usa “delator
premiado”) com alcaguete do crime comum, como na absurda proposta do presidente da
Câmara, Eduardo Cunha, de limitar o benefício à colaboração a quem não estiver
preso. Isso excluiria o Brasil do mundo civilizado, que fez um pacto contra a
corrupção.