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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

O andar de cima e a segurança



É possível criar uma organização privada para remunerar e estimular os policiais, sem meter o Estado nisso

Um renomado cirurgião plástico de Nova York, republicano radical, acabara de informar que não poderia dar consultas na quarta-feira porque deveria atender policiais que precisavam de seus serviços. Esse médico é inimigo de qualquer coisa que o Estado faça, inclusive cobrar pedágios. Deu-se então o seguinte diálogo: Você tem muitas clientes latino-americanas, com maridos ricos que pensam parecido contigo.
— De jeito nenhum. Eu sou conservador. Vocês são fascistas.

O cirurgião opera policiais e seus familiares porque pertence a uma associação particular destinada a ajudá-los. Ele pode ter exagerado, mas acertou num ponto: o andar de cima latino-americano acha que pode cuidar da própria segurança, blindando-se, contratando guardas e tolerando milícias. No Rio há mais carros blindados do que em Nova York, e deu no que se vê. Ou há segurança para todo mundo, ou não há para ninguém.  Em centenas de cidades americanas existem associações de amigos da polícia. Não passa pela cabeça de ninguém viver num lugar onde a polícia está sucateada material, financeira e socialmente.

Começando pelo Rio, pode-se sair da dança de perus bêbados na qual não há segurança porque não há polícia, e não há polícia porque nem ela tem segurança.  O andar de cima pode abrir, sem fanfarra, uma discussão para criar um fundo de assistência aos policiais civis e militares. Funcionaria assim: empresas e pessoas físicas criariam um fundo destinado a financiar policiais com bônus de desempenho, complementos no acesso à casa própria e à educação. Poderia também complementar aposentadorias e oferecer serviços médicos especializados. Esse fundo ficaria anexo a uma associação à qual os policiais adeririam voluntariamente. Seria uma iniciativa estritamente privada, sem nada a ver com o governo, nada mesmo. Nem presenças simbólicas, eventos, convênios ou coisa parecida.

No dia zero, as portas estariam abertas a todos. A partir dessa hora, caso o policial fosse denunciado pelo Ministério Público por qualquer irregularidade, seria desligado da associação, perdendo os benefícios que porventura estivesse recebendo. Se uma denúncia do Ministério Público é pouco, pode-se pensar em outros mecanismos de correição. Na outra ponta, as empresas e os cidadãos abonados colocariam seu dinheiro no fundo por prazos fixos, renováveis a juízo do interessado. A engenharia financeira e jurídica dessa iniciativa pode ser desenhada em menos de uma semana.

A adesão e a permanência de um policial nessa organização viriam a ser um distintivo de boa conduta. Seria uma fórmula capaz de levar a Lei de Serpico para dentro das polícias civis e militares dos estados brasileiros. Ela diz que “é o policial corrupto quem deve ter medo do honesto, e não o contrário.”  Serpico (Al Pacino no filme) era um jovem agente da polícia de Nova York e denunciou esquemas de corrupção no seu serviço, mas deu em nada. Suas queixas apareceram na imprensa, e o prefeito da cidade criou uma comissão para estudar o assunto. Meses depois, Serpico foi atraído para uma armadilha, tomou um tiro na cara e seus colegas deixaram-no agonizando. Um cidadão que viu a cena salvou-o. Isso aconteceu em Nova York em 1971.

Elio Gaspari, jornalista - O Globo