É possível criar uma organização privada para remunerar e estimular os policiais, sem meter o Estado nisso
Um
renomado cirurgião plástico de Nova York, republicano radical, acabara de
informar que não poderia dar consultas na quarta-feira porque deveria atender
policiais que precisavam de seus serviços. Esse médico é inimigo de qualquer
coisa que o Estado faça, inclusive cobrar pedágios. Deu-se então o seguinte
diálogo: — Você
tem muitas clientes latino-americanas, com maridos ricos que pensam parecido
contigo.
— De
jeito nenhum. Eu sou conservador. Vocês são fascistas.
O
cirurgião opera policiais e seus familiares porque pertence a uma associação
particular destinada a ajudá-los. Ele pode ter exagerado, mas acertou num
ponto: o andar de cima latino-americano acha que pode cuidar da própria
segurança, blindando-se, contratando guardas e tolerando milícias. No Rio há
mais carros blindados do que em Nova York, e deu no que se vê. Ou há segurança para
todo mundo, ou não há para ninguém. Em
centenas de cidades americanas existem associações de amigos da polícia. Não
passa pela cabeça de ninguém viver num lugar onde a polícia está sucateada
material, financeira e socialmente.
Começando
pelo Rio, pode-se sair da dança de perus bêbados na qual não há segurança
porque não há polícia, e não há polícia porque nem ela tem segurança. O andar
de cima pode abrir, sem fanfarra, uma discussão para criar um fundo de
assistência aos policiais civis e militares. Funcionaria assim: empresas e
pessoas físicas criariam um fundo destinado a financiar policiais com bônus de
desempenho, complementos no acesso à casa própria e à educação. Poderia também
complementar aposentadorias e oferecer serviços médicos especializados. Esse
fundo ficaria anexo a uma associação à qual os policiais adeririam
voluntariamente. Seria uma iniciativa estritamente privada, sem nada a ver com
o governo, nada mesmo. Nem presenças simbólicas, eventos, convênios ou coisa
parecida.
No dia
zero, as portas estariam abertas a todos. A partir dessa hora, caso o policial
fosse denunciado pelo Ministério Público por qualquer irregularidade, seria
desligado da associação, perdendo os benefícios que porventura estivesse
recebendo. Se uma denúncia do Ministério Público é pouco, pode-se pensar em
outros mecanismos de correição. Na outra ponta, as empresas e os cidadãos
abonados colocariam seu dinheiro no fundo por prazos fixos, renováveis a juízo
do interessado. A engenharia financeira e jurídica dessa iniciativa pode ser
desenhada em menos de uma semana.
A adesão
e a permanência de um policial nessa organização viriam a ser um distintivo de
boa conduta. Seria uma fórmula capaz de levar a Lei de Serpico para dentro das
polícias civis e militares dos estados brasileiros. Ela diz que “é o policial
corrupto quem deve ter medo do honesto, e não o contrário.” Serpico
(Al Pacino no filme) era um jovem agente da polícia de Nova York e denunciou
esquemas de corrupção no seu serviço, mas deu em nada. Suas queixas apareceram
na imprensa, e o prefeito da cidade criou uma comissão para estudar o assunto.
Meses depois, Serpico foi atraído para uma armadilha, tomou um tiro na cara e
seus colegas deixaram-no agonizando. Um cidadão que viu a cena salvou-o. Isso
aconteceu em Nova York em 1971.
Elio
Gaspari, jornalista - O Globo
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