Atitudes do Executivo, Legislativo e Judiciário traem e desmoralizam o Estado de Direito
A
incrível e absurda malandragem perpetrada por três representantes do povo de um
partido que diz servir aos trabalhadores e respeitar a democracia, com a
cumplicidade de um desembargador federal, no primeiro domingo da Copa da Rússia
sem o Brasil, expôs a explícita desmoralização do nosso Estado de Direito.
Finda a semana em que os flagrantes delitos no registro espúrio de sindicatos
no Ministério do Trabalho afundaram o Poder Executivo no pântano do descrédito,
a manobra escusa tentada para retirar Lula da cela pela porta dos fundos foi a
gota d’água que inundou as enlameadas cavernas do Judiciário.
Às
vésperas de agosto, mês tido como “do desgosto”, o cidadão brasileiro já tinha
sido exposto a sórdidos truques de parlamentares, legitimados para legislar em
nome do povo. O projeto do deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP) perdoando as
dívidas das multas de caminhoneiros e transportadoras que provocaram pane seca
e desabastecimento de combustíveis e víveres foi incluído no relatório de Osmar
Terra (MDB-PR) que torna o frete mínimo obrigatório. Essa iniciativa do
Legislativo, com as bênçãos do Executivo, que distribui verbas do depauperado
erário a mancheias entre deputados das bancadas governistas, reproduz hoje a
mesma relação sórdida já antes condenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O
arrombamento da ordem constitucional, que consagra o mercado livre, para
resolver uma crise criada pela ousadia dos chantagistas, que expuseram a
fragilidade de um governo impopular e desacreditado, não passa de uma versão
contemporânea do mensalão, que abriu a temporada de caça aos gatunos. Durante
curto interregno, a cúpula do Judiciário apoiou o combate à corrupção, efetuado
por uma geração competente e probo de policiais, procuradores, juízes e
desembargadores federais das instâncias iniciais. Isso deu à população espoliada
a sensação de que a Justiça sanearia os altos e podres Poderes da República.
Mas tal aliança durou muito pouco.
Logo as
brechas, pelas quais criminosos de colarinho-branco passavam para ficar fora do
alcance da lei, se abriram nas divisões internas da cúpula da atividade
judiciária, em que boas iniciativas sempre sucumbiram ao corporativismo e à
corrupção. Essas câmaras escuras são percorridas à mercê da negação do
decantado espírito da colegialidade, do qual somente uma ministra da “Suprema
Corte”, Rosa Weber, parece ser adepta. Ao contrário dela, os outros quatro que
deram votos vencidos na decisão pela jurisprudência que autoriza prisão de
condenados em segunda instância ─ a dupla Mello e De Mello, Lewandowski e
Toffoli ─ aliaram-se ao pagão novo Gilmar. E a desafiam em capciosas decisões
monocráticas.
A
tabelinha Lava Jato-STF não resistiu à nada gloriosa entrada dos tucanos nas
listas dos delatados da operação. Isso causou a guinada de 180 graus de Gilmar,
dos que apoiavam a jurisprudência firmada em três votações de 2016 para os
adeptos da distorção de preceitos constitucionais. Essa prática é antiga. Tendo
confessado que redigiu artigos da Constituição que não foram aprovados pela
maioria do plenário, Nelson Jobim ora é tido por alguns como presidenciável da
conciliação em outubro. E o então presidente do STF Ricardo Lewandowski
rasurou cinicamente o artigo da Constituição que proíbe condenados em
impeachment de exercer cargo público por oito anos. A canetada, sugerida por
Renan Calheiros, permite hoje que Dilma se candidate ao Senado pelo PT.
Quem não
redigiu nem rasurou a Carta Magna apela para a leitura errada do artigo 5.º,
segundo o qual ninguém é “considerado culpado antes do trânsito em julgado”
de seu processo. A extensão da isenção da culpa à proibição da prisão ou à
presunção de inocência, finda na segunda instância, não está no dicionário, mas
pode ser incluída, mercê do “poder da grana, que ergue e destrói coisas belas”
(apud Caetano Veloso).
Recentemente,
o ministro Mello soltou traficantes condenados em segunda instância com a mesma
desfaçatez com que Gilmar concedeu habeas corpus a clientes da banca da mulher.
E Toffoli devolveu o ex-chefe Dirceu, condenado em segunda instância a mais de
30 anos de prisão, ao doce lar. Atribui-se a esse duas vezes apenado (no
mensalão e no petrolão) o planejamento da molecagem do desembargador do
Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), Rogério Favreto, por ele
indicado, a desafiar os colegas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF,
mandando soltar o mais famoso presidiário do Brasil.
Si non è
vero, è ben trovato (se não é verdade é bem pensado), diria don Vito Corleone,
O Poderoso Chefão da ficção de Mário Puzo. A fresta parecia promissora para o
trio - dois deputados federais e um
levado à vaga aberta pela pressão do dirigente Quaquá na prefeitura do Rio. Um
dos 27 desembargadores do TRF-4 em seu primeiro plantão teria de ser mais
sensível à ideia “original” de que a pré-candidatura de Lula à Presidência
seria o fato novo para lhe permitir conceder o habeas corpus pedido à sorrelfa.
Meia hora depois do início do plantão do simpatizante na sexta-feira, deram à
luz o mostrengo.
Como
Toffoli, Favreto serviu a Dirceu. E como Toffoli mandou a jurisprudência da
prisão pós-segunda instância às favas. Não havia mais a possibilidade de contar
com o relaxamento da classificação do Brasil para a semifinal da Copa, pois a
seleção de Tite fora eliminada duas horas e meia antes. Não é correto, então,
perguntar se não combinaram com os belgas e pensar que a molecagem, de que a
defesa de Lula se fingiu distante, passaria incólume na euforia geral.
JoséNêumanne, jornalista - O Estado de São Paulo