Grande desafio das democracias é neutralizar organizações como o Estado Islâmico sem destruir o regime de direitos e liberdades a tanto custo construído
Desde que um terrorista do Estado Islâmico (EI) apareceu no vídeo da primeira decapitação pelo grupo de um ocidental — o jornalista americano James Foley, em agosto — falando em inglês com sotaque britânico, o Ocidente começou a entender o tamanho da ameaça. Logo apelidado do “Jihadi John”, o terrorista voltou a aparecer em outros vídeos do EI em novas decapitações de americanos e britânicos. Até que dois terroristas franceses foram identificados em novo vídeo, de degola coletiva, no qual “Jihadi John” segura a cabeça cortada do trabalhador humanitário Peter Kassig, dos EUA.O EI deixou de ser apenas algo diabólico, mas distante, lutando impiedosamente a partir de Síria e Iraque, onde implantou um califado, sob bombardeio de aviões americanos e de aliados, e até do Irã. Dos 31 mil combatentes atribuídos à organização, metade é de países estrangeiros, a grande maioria muçulmanos. Mas há também americanos, canadenses, britânicos, franceses, alemães e australianos, entre outros. Calcula-se em 3 mil o número de europeus que se juntaram à jihad no Oriente Médio — mais de 1.100 franceses e 500 britânicos.
A primeira consequência disso já era conhecida: a ameaça de esses jihadistas, com seus passaportes ocidentais, retornarem a seus países de origem para fazer atentados. Ou a hipótese de células adormecidas de organizações terroristas serem “despertadas” a qualquer momento. O jihadista de origem francesa Abu Salman al-Faranci sugeriu, em vídeo, que os que não pudessem se juntar ao EI em Síria e Iraque deveriam “operar dentro da França”.
Mas o que se compreende agora é que esses jihadistas puderam ser doutrinados e arregimentados no Ocidente, pelo Islã radical, graças a características próprias das democracias ocidentais — sociedades abertas e, até certo ponto, acolhedoras de imigrantes. É todo esse modo de vida que está em xeque com a proliferação dos “Jihadi Johns”. Os governos ocidentais são obrigados a adotar medidas restritivas da imigração e contra suas próprias comunidades muçulmanas. São as liberdades democráticas que estão em jogo. Na Inglaterra, por exemplo, o governo apresentou um pacote para restringir a imigração e melhorar, junto ao eleitorado, a imagem do Partido Conservador para as eleições de 2015.
É ambiente propício ao avanço de partidos de extrema direita, como a Frente Nacional, na França, e o Ukip, na Grã-Bretanha, com suas mensagens de intolerância, xenofobia e anti-UE. Nos EUA, o papel é representado pelo Tea Party, ala radical do Partido Republicano. O grande desafio das democracias ocidentais, portanto, é neutralizar organizações como o EI, cujo objetivo final seria um apocalíptico confronto entre civilizações, sem deixar que essa luta destrua o patrimônio democrático a tanto custo construído.
Fonte: Editorial - O Globo