Fernando Gabeira
Por senti-la ameaçada é que Bolsonaro decidiu intervir no Coaf, na Receita e na PF
No início do processo de redemocratização, campanha das diretas, vi num
mesmo palanque em Caruaru dois candidatos que se dispunham a combater a
corrupção: Collor, caçador de marajás, e Lula, que traria ética para a
política. Ambos perderam a batalha. Não posso dizer que Bolsonaro vá pelo mesmo caminho, pois cada um tem um
roteiro próprio para contradizer o seu discurso. O dele tem um caráter
doméstico. Ele decidiu intervir no Coaf, na Receita Federal e na Polícia
Federal (PF) porque sentiu ameaças à sua família.
Ele próprio revelou que o Fisco fez uma devassa nas finanças de seu
irmão, candidato a prefeito em Miracatu, no Vale do Ribeira. Sua
campanha presidencial foi investigada. Flávio, filho de Bolsonaro, estava sendo investigado a partir de dados
do Coaf. Toffoli suspendeu as investigações. O presidente aprovou. E agora quer mudar três nomes da Receita no Rio e um delegado da PF. A
Receita é apenas uma das pernas do esquema de combate à corrupção que
funcionou na Lava Jato. Talvez seja a mais vulnerável. Tentei explicar
isso a um fiscal, que, por sua vez, descrevia os mecanismos
automatizados e anônimos que indicam a necessidade de investigar o
contribuinte.
Não há grande lastro popular no apoio à Receita. De modo geral, as
pessoas a temem, ou talvez a rejeitem inconscientemente. A Inconfidência
Mineira e as lutas contra as taxações coloniais podem ter contribuído
para isso. Nem todos se distanciam para vê-la em suas funções mais
amplas, importantes para toda a sociedade. A interferência no Porto de Itaguaí, por exemplo, interrompe um trabalho
que dificultava a ação da milícia que domina a área. [ao que se sabe apenas um funcionário foi transferido;
Considerando o princípio - existente desde que o ser humano existe - de que ninguém é insubstituível e os mecanismos automatizados e anônimos que indicam o rumo das investigação da Receita, fica dificil entender como a transferência de apenas um funcionário possa trazer tantos prejuízos as investigações no Porto de Itaguaí e celeumas sobre a remoção de um servidor da RF.]
Pelo porto saem
drogas e entram armas.
Bolsonaro não explicou a razão de sua interferência em Itaguaí. Mas
deveria ser mais cuidadoso num tema que envolve a milícia diretamente.
As investigações em torno do gabinete do então deputado estadual Flávio
Bolsonaro mostram que familiares de milicianos foram empregados ali. O
próprio Fabrício Queiroz parecia ter vínculos com o grupo do Escritório
do Crime, mas jamais apareceram para todos essas inter-relações
gabinete-milícia. O descaminho de Bolsonaro no trato com a autonomia dessas instituições
se dá num momento singular. Outras famílias importantes, do Poder ao
lado, a mulher do ministro Toffoli e a de Gilmar Mendes, também estavam
incomodadas com os dados do Coaf. [também ocorreram vazamentos no caso Fabricio e que, tudo indica, não foram sequer investigados.] O lamentável vazamento no caso de
Gilmar acabou contribuindo para criar uma aliança dentro do STF que
inclui Alexandre de Moraes, com sua decisão de suspender investigações.
No Poder do outro lado, a Câmara aprovou um projeto de abuso de
autoridade, de noite e com baixo quórum. É um tema em que se pode chegar
a um acordo. Mas não deveria ser votado assim. Essa história de Rodrigo
Maia decidir que havia quórum é muito subjetiva. A Lei de Abuso de Autoridade, apesar de ainda estar indefinido o papel
de Bolsonaro nela – pode vetar ou não –, também é parte de uma ofensiva
que o topo dos três Poderes desenvolve contra o sistema de combate à
corrupção. Ilusório pensar que as coisas voltarão a ser como antes da
Lava Jato. Talvez a cúpula dos três Poderes perceba isso. O que parece
estar em curso é uma espécie de freio de arrumação. O objetivo é apenas o
de facilitar o movimento dos políticos e conter investigadores e
juízes. Que nível de resultado sairá desse esforço ainda é uma
incógnita.
Bolsonaro enfraquece Sergio Moro ao intervir na Polícia Federal. As
mensagem vazadas da Lava Jato não tiveram efeito demolidor, mas foram um
elemento de estímulo ao freio de arrumação. [mensagens que continuam produto de crime e sem autenticidade comprovada.] De certa forma, todo esse movimento era previsível e a tensão, às vezes,
se concentrava num só tema, como, por exemplo, a prisão após julgamento
em segunda instância. O que é novidade, não tanto para mim, que vi
outros projetos fracassarem, é o comportamento do governo que se diz
contra a corrupção.
Para começar, o próprio partido de Bolsonaro, o PSL, aprovou o regime de
urgência para a Lei de Abuso. Sinal de ambiguidade. O abuso de
autoridade, em termos gerais, existe há décadas. Por que, então, aprovar
a lei com tão pouca gente e discussão? Juízes e procuradores sentem-se intimidados com o nível de abstração em que a lei foi redigida. Por que não negociar com eles? O único tema que alguns governistas problematizaram foi o uso de
algemas. Isso é importante no trato do crime comum, mas insignificante
em termos de luta contra a corrupção. Eles não costumam fugir, muito
menos reagir violentamente à prisão.
Os eventuais vetos que Bolsonaro apresentar à Lei de Abuso não atenuam o
peso de sua investida sobre os órgãos de investigação. Não ficou clara a
razão de ele pedir o afastamento do delegado da PF do Rio. A PF do Rio
contribuiu para as investigações sobre a morte de Marielle Franco. Elas
resultaram na prisão de milicianos. Bolsonaro alegou que a razão da mudança era a produtividade. Mas a PF do
Rio também atua na Lava Jato, cuja produtividade talvez seja maior no
momento do que em Curitiba ou São Paulo.
Como quase todas as intervenções esbarram em desconforto familiar ou
repressão às milícias, elas significam um retrocesso na maneira como um
presidente se comporta diante da autonomia das instituições.
Ironicamente, um governo que se elegeu tendo como bandeira o combate à
corrupção e com os ventos favoráveis da Lava Jato aniquila as
possibilidades de outra operação eficaz no Brasil. Quebrou uma das suas pernas, a fiscalização integrada das transações
financeiras, enfim, perde o rumo do dinheiro, bloqueia o caminho real
para investigar corrupção. E não é só Bolsonaro. Há mais presidentes
envolvidos nisso, com destaque para o do STF, que proibiu o uso dos
dados do Coaf.
Uma ação entre famílias.
O Estado de S. Paulo - Fernando Gabeira, jornalista