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domingo, 19 de agosto de 2018

A misteriosa morte de duas crianças decapitadas e a imaginação satânica de um delegado gaúcho

A polícia ainda não sabe quem são, como, quando, por que foram mortos e por que seus corpos tiveram tratamento tão bárbaro 

A imagem de Belzebu no Templo de Lúcifer, que foi investigado pela polícia. As evidências colhidas lá desmentiam a versão do delegado Fermino - Arthur Kolbetz / Agência O Globo

Na manhã de 4 de setembro de 2017, o delegado Rogério Baggio Berbicz mal havia tomado posse como titular da Delegacia de Homicídios de Novo Hamburgo, cidade gaúcha de cerca de 250 mil habitantes no Vale dos Sinos, quando surgiu o primeiro caso. As informações preliminares indicavam um crime sinistro, repulsivo. Em busca de material reciclável, um homem vasculhava detritos rotineiramente despejados num matagal quando deparou com pedaços de carne. Assustou-se ao perceber que se tratava de partes humanas e chamou a polícia. Os peritos constataram que troncos, pernas, braços, pés e mãos haviam sido cortados com precisão nas juntas, como se uma serra de frigorífico tivesse sido usada. Estavam em um saco plástico azul e em duas caixas de uma marca de material de limpeza do Nordeste, não comercializada na Região Sul. Catorze dias depois, mais pedaços dos corpos foram localizados no lado oposto da mesma via. As cabeças nunca foram achadas.

As vítimas são uma menina de 12 anos e um menino de 8, conforme concluiu o Instituto de Criminalística. A garota já exibia os primeiros sinais de puberdade no corpo e de vaidade nas unhas pintadas de rosa; o garoto usava uma camiseta vermelha e possuía alto teor de álcool no sangue. Ambos tinham a pele branca com o bronzeado de quem passava horas brincando ao sol. Os cadáveres não cheiravam mal, o que levou a polícia a inferir que as mortes teriam ocorrido no máximo 48 horas antes. O exame de DNA apontou que as crianças são parentes por parte materna. Supõe-se que sejam irmãos, filhos da mesma mãe, mas de pais diferentes — é tudo que se sabe sobre eles. Ninguém reclamou sua morte.
 Escultura abandonada no Templo de Lúcifer. Nas buscas, o delegado Fermino mandou agentes seguir galinhas em busca de pistas - Arthur Kolbetz / Agência O Globo

O delegado Berbicz determinou que a solução do mistério do duplo homicídio fosse prioridade. “Foi uma coincidência esses corpos serem encontrados no mesmo dia em que comecei na delegacia”, disse o delegado de 39 anos de idade, dez de carreira. “Parecia que era um caso que só eu tinha de resolver.” As impressões digitais das crianças foram checadas em bancos de dados de todos os estados, cadastros de desaparecidos no Brasil passaram a ser monitorados regularmente e famílias de estudantes que estavam faltando às aulas na região foram visitadas pelos investigadores da Delegacia de Homicídios de Novo Hamburgo. Tudo em vão.

Na manhã de 8 de janeiro de 2018, a três dias de voltar ao trabalho, depois de quase um mês de férias no Paraná, Berbicz foi avisado por colegas que o mistério fora resolvido. Os detalhes do crime envolveriam um ritual de magia negra, um bruxo de fama internacional e empresários do ramo imobiliário. Àquela altura, quatro pessoas já estavam presas e tudo seria explicado em uma coletiva de imprensa pelo delegado Moacir Fermino Bernardo, de 67 anos, que o substituíra durante as férias. Como mero espectador, Berbicz acompanhou a coletiva de imprensa transmitida ao vivo pela página no Facebook de um jornal local para entender a trama que não havia sido capaz de solucionar.


Ao lado de dois superiores da Polícia Civil estava o delegado Fermino. Antes de começar a falar, foi elogiado pelos chefes. Com 40 anos de polícia, não escondia o contentamento. Era o grande caso que esperava para se aposentar e projetar-se nas carreiras política e religiosa que pretendia seguir, segundo pessoas próximas. Fermino já se candidatara duas vezes a vereador, em 2004 e 2008, em São Leopoldo – sem sucesso. Desta vez, pensava em concorrer a uma vaga de deputado estadual ou federal. Nascido católico, ele se tornara evangélico três anos antes. Apresentava-se como um “servo de Deus” e alimentava o sonho de ser pastor.

Fermino começou a falar com voz alta e grave e gestos expansivos, como numa pregação. “Primeiro, quero agradecer a Deus Todo-Poderoso pela revelação que deu a dois profetas e a um servo seu menor, Moacir Fermino Bernardo”, disse, referindo-se a si mesmo na terceira pessoa. Era só o começo. Fermino surpreendeu a todos ao afirmar que a solução do caso fora uma “revelação divina”. Segundo ele, um empresário do ramo imobiliário em dificuldades financeiras teria pagado R$ 25 mil para um bruxo, dono de um templo de culto a Lúcifer em Gravataí – cidade próxima –, para fazer uma magia em troca de prosperidade. Para dar certo, relatou Fermino, elevando a voz para dramatizar o caso, era preciso que o trabalho dedicado a Moloque deus cultuado pelos amonitas, um povo citado no Antigo Testamento, e considerado um demônio pelo cristianismo ¦ tivesse a participação de sete pessoas.


Além disso, explicou o delegado, o empresário renunciou a Deus pingando sete gotas de sangue em uma Bíblia perante o altar de uma igreja. Para obter a prosperidade nos negócios, duas crianças deveriam ser sacrificadas. Por fim, as partes dos corpos das vítimas teriam sido descartadas próximo à propriedade do empresário, de modo a fechar quatro pontos, conforme o rito satânico. As cabeças deveriam permanecer enterradas para concretizar o pacto diabólico. O tal empresário era Jair da Silva. Também teriam participado do crime dois filhos de Silva, além de seu sócio Paulo Ademir Norbert e dois vizinhos, um deles um argentino que teria roubado um caminhão em Novo Hamburgo e o trocado pelas duas crianças na província de Corrientes, na Argentina. Fermino referia-se aos suspeitos como os “sete discípulos de Satanás”.

O Ministério Público deu parecer desfavorável aos pedidos de prisão feitos pelo delegado, diante da fragilidade das evidências materiais apresentadas. Mesmo assim, a Justiça considerou que havia “provas contundentes” e acatou em 21 de dezembro de 2017 o pedido de prisão temporária dos sete envolvidos. A prisão temporária foi convertida em preventiva, graças ao aparecimento de uma testemunha-chave, que afirmou ter visto os sete acusados com duas crianças em um ritual com velas e capas pretas perto de onde foram encontrados os corpos. Dizia ela que a menina estaria caída no chão, enquanto o garoto exibia sinais de embriaguez.

A testemunha contou que foi à noite ao local, onde trabalhava fazendo uma escavação, buscar um casaco e a carteira, que havia esquecido durante o dia. Essa não teria sido a única pessoa a presenciar partes do ritual. “O depoimento de várias testemunhas (comprovam o ritual). Algumas viram e outras se calaram porque têm medo de morrer”, garantiu o delegado Fermino. Ele sugeriu que todos fossem incluídos no Programa Estadual de Proteção à Testemunha.

O delegado Fermino levantou o braço acima da cabeça ao dar voz de prisão a Silvio Fernandes Rodrigues, de 44 anos, e vociferou: “Eu sou Deus e vim prender o Satanás!”. Mestre de alta magia há mais de 20 anos, Rodrigues que recusa o título de bruxo –foi surpreendido com a chegada de duas viaturas da polícia ao Templo de Lúcifer, uma área de 7 hectares em Gravataí. A propriedade na área rural exibe um pentagrama no portão. O símbolo, usado em práticas pagãs, esotéricas e satanistas, costuma atiçar a curiosidade e o medo de quem passa pela estrada.

(...)

Fermino foi afastado de suas funções e está sendo processado. Um policial também está respondendo judicialmente por ter assinado o relatório de serviço. O falso profeta Paulo Sérgio Lehmen é o único que foi preso. Permaneceu na cadeia por quase cinco meses até conseguir um habeas corpus no final de junho. O outro informante foi liberado. A Justiça revogou as prisões de todos os sete acusados iniciais.

Os envolvidos ainda contabilizam os danos em sua vida, reflexo dos dias em que seus rostos não saíram de evidência. “Eu não confio mais na Justiça”, disse Jair da Silva, que afirmou ter dificuldade para seguir fazendo seus negócios e até mesmo para vender melancia na beira da estrada. O mestre de magia Silvio Rodrigues fechou seu templo e já não tem clientes como antigamente. Atualmente, faz seus rituais em uma garagem de 18 metros quadrados. A imagem de Belzebu, feita em gesso, está com o chifre esquerdo quebrado. “Eles atacaram minha espiritualidade. Vou usar o lado negativo para eles sentirem na pele tudo o que passei. Vou guerrear com todas as minhas armas e trancar os caminhos deles”, disse.