Meu texto de estreia na VEJA, no dia 6 de setembro de 2006, chamava-se: “Urna não é tribunal. Não absolve ninguém”.
Lula estava prestes a se reeleger, Questionava-se, então, se aquilo poderia valer por uma absolvição prévia no caso do mensalão. Mais: os atos por ele praticados no primeiro mandato poderia ser considerados “estranhos” a seu segundo mandato.
Que coisa! Um artigo publicado há quase 12 anos tem uma estranha atualidade. Leiam.
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Um novo refrão anda “nas cabeças, anda
nas bocas”, poderia dizer o lulista Chico Buarque: a possível reeleição
do presidente absolve os petistas de todos os seus crimes. As urnas
fariam pelo PT o que o ditador soviético Josef Stalin fez por si mesmo:
apagar a história. É um embuste. A vantagem do presidente se deve à
economia, à inépcia e inapetência das oposições, às políticas
assistencialistas, tornadas uma eficiente máquina eleitoral, e à
ignorância, agora a serviço do tal “outro mundo possível”. O povo é,
sim, um tipinho suspeito, mas não vota para livrar a cara dos marcolas
da ideologia.
O voto do
ignorante vale menos? Não. Mas também não vale mais. Nem muda a natureza
das instituições. E não absolve ninguém, tarefa que continuará a ser da
Justiça. A vacina contra o autoritarismo virótico de quem pretende cair
nos braços do povo para ser absolvido de seus crimes está em Origens do
Totalitarismo, da pensadora judia-alemã Hannah Arendt. Aprende-se ali
que não devemos permitir que os inimigos da democracia cheguem ao poder,
negando-nos, uma vez lá, em nome dos seus princípios, as liberdades que
lhes facultamos em nome dos nossos.
A tese da
absolvição serve ao propósito de pautar a imprensa com uma agenda
virtuosa. O programa de governo do PT prevê, diga-se, o incentivo
oficial à “mídia independente”. Em lulês, significa financiar, com o
dinheiro dos desdentados, a sabujice disfarçada de jornalismo. A prática
já está em curso. Felizmente, a democracia é um regime legitimado pela
maioria, mas sustentado pelas elites, de que a imprensa faz parte. As
esquerdas se arrepiam diante dessa afirmação. Entendo.
A
alternativa histórica às elites esclarecidas é o déspota esclarecido.
Se, no passado, ele podia ser um homem, no presente, tem de ser um
“partido”, um ente de razão com poder de se sobrepor às leis, embora não
dispense o demiurgo. Lula é o Tirano de Siracusa (aquele que Platão
tentou converter à filosofia, coitado!) dos intelectuais petistas. A
decana do delírio é a filósofa Marilena Chaui. No livro Simulacro e
Poder: uma Análise da Mídia, ela afirma que o discurso da direita se
sustenta no senso comum. À esquerda caberia desmontá-lo para criar uma
“nova fala”.
Marilena é
a Tati Quebra-Barraco da academia. Seu funk filosófico apela à
barbárie, mas tem o charme da resistência, a exemplo de certas canções
de Chico – Lula é o “meu guri” que chegou lá. Ela ressuscita a tara do
marxismo vagabundo de que o senso comum existe como falsa consciência, a
ser superada pela iluminação de uma razão transformadora. Conclui-se
que o povo, deixado à própria sorte, vai para a direita. Se educado pela
militância, pode atravessar os umbrais da liberdade. Na China de Mao
Tse-tung, 70 milhões morreram sob o efeito dessa luz.
Mas eu
estou com ela. E com Shakespeare. Também acho que o povo não é de
confiança. O bardo diz o que pensa no discurso de Marco Antônio diante
do corpo de Júlio César, assassinado havia pouco. Leiam a peça ou vejam o
filme dirigido por Joseph L. Mankiewicz – um judeu de origem alemã
nascido nos EUA. Um minicoquetel de figuras retóricas transformou o
tirano assassinado num herói, e o herói republicano, Brutus, num tirano.
César era intuitivo, sentimental e tolerante com os de baixa estirpe;
Brutus era tímido, racional e ensimesmado.
Açulada
pelos conspiradores, a massa primeiro tripudia diante do corpo inerme;
chamada por Marco Antônio à sua natureza amorosa e primitiva, adora a
memória do ditador. Afinal, “quando os pobres deixavam ouvir suas vozes
lastimosas, César derramava lágrimas”, discursa Marco Antônio. Ocorre-me
que o rechonchudo Getúlio Vargas foi o nosso César shakespeariano, e o
magricela Carlos Lacerda, o nosso Cássio, o chefe dos conspiradores.
Antes de seu trágico fim, César havia dito a Marco Antônio: “Quero
homens gordos em torno de mim, homens de cara lustrosa e que durmam
durante a noite. Ali está Cássio com o aspecto magro e esfaimado. Pensa
demais. Tais homens são perigosos”. O mal está no pensamento.
Se eu,
Marilena e Shakespeare não confiamos no povo, onde está a diferença? O
dramaturgo o trata como o vulgo instável de sempre, e Marilena quer
educá-lo segundo os rigores de uma razão supostamente iluminista; ele só
passará a ser uma categoria relevante quando acordar de seu sono e
aderir a uma utopia finalista. Trata-se de um embuste utópico em nome do
qual se institui o presente eterno na política, que passa a ser um jogo
sem regras previamente definidas justamente para que qualquer
conveniência possa ser considerada uma regra do jogo.
Quando,
para defender o PT, um ator diz que a política pressupõe enfiar a mão na
sujeira ou um músico dá um pé no traseiro da ética, ambos estão pondo
em termos muito práticos o que a intelligentsia petista urdiu como
teoria de poder: a superação do senso comum (de direita?), segundo o
qual não se deve roubar dinheiro público. A “nova fala” do barraco de
Marilena acena então com a pior de todas as tiranias: aquela exercida
pelos servos.
E o “meu”
povo? Ele é a fonte legitimadora das instituições democráticas e,
portanto, tem de ser protegido de si mesmo se atentar contra os códigos
que guardam seus direitos – e isso inclui absolver ladrões. Esse é,
aliás, o aparente paradoxo das sociedades modernas, em que vigora o
estado de direito: a cultura da reclamação, da permanente mobilização,
da constante reivindicação de direitos resulta em grupos de pressão que
querem impor a sua agenda, ainda que o preço seja o fim da
universalidade das leis. A esquerda, faceira, torna-se porta-voz desse
novo humanismo de tribo. O paradoxo é aparente porque uma democracia não
proíbe a existência de tais movimentos, mas também não cede. E seu
limite é a lei, sem as “acomodações táticas” de Márcio Thomaz Bastos.
O tucano
Geraldo Alckmin diz que o povo nunca erra. Está errado. Houvesse um modo
mais seguro de governar, seria o caso de aposentar a democracia. Mas
não há. Basta olhar para os números das pesquisas para constatar que,
pela primeira vez desde a redemocratização, há um divórcio entre a
escolha dos mais pobres e menos instruídos e a dos chamados “formadores
de opinião”. O neo-iluminismo petista se constrói tendo em uma das mãos a
miséria tornada cativa da caridade oficial – os servos senhores de
servos – e, na outra, a desinformação, a ignorância. Não chega a ser uma
luta de classes. É só um arranca-rabo, mas é o bastante para alimentar
as ilusões redentoras de quem usa a Ética do filósofo holandês Spinoza
para justificar a ética de Delúbio Soares e Paulo Betti.
Ademais,
só é esse o estado geral das artes porque, vá lá, se é verdade que o
senso comum é “de direita”, como quer Tati Marilena, a voz dominante do
establishment, hoje, foi sequestrada pela esquerda. Esta tem projeto de
poder, produz valores e ideologia; os democratas, que “eles” chamam de
“direita”, acreditam que basta conquistar o comando, sem fazer a guerra
cultural. Urna não é
tribunal. Não absolve ninguém. E não custa lembrar: Nixon teve de
renunciar ao segundo mandato por causa de uma besteira feita no
primeiro. Foi eleito pelo povo. Foi deposto pelas instituições. As
primeiras palavras da Constituição americana explicam tudo: “Nós, o
povo…”. Foi escrita para durar. Afronta, se preciso, o povo que há em
nome do povo a haver. Se reeleito, Lula que se cuide. A luta continua.
Blog do Reinaldo Azevedo