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quarta-feira, 2 de maio de 2018

A torre e o palacete

O prédio era uma das jóias da coroa do movimento dos sem-teto de São Paulo, que cresceu verticalmente durante a gestão do ex-prefeito Fernando Haddad e se beneficiou do corpo mole da União.  O incêndio do edifício Wilton Paes de Almeida é emblemático da degradação das cidades brasileiras e seus conflitos sociais, tendo como epicentro a ocupação predatória do espaço urbano. Tombado desde 1992, era considerado o pioneiro das novas tendências arquitetônicas da década de 1960. Projeto do arquiteto Róger Zmekhol para a sede da Cia. Comercial Vidros do Brasil (CVB), a torre de 24 andares, com lajes de concreto, estrutura metálica e fachadas de vidro, contracenava com a velha Igreja Luterana em estilo neogótico no Largo do Paissandu, no Centro de São Paulo, também parcialmente destruída pelas chamas. Juntos, o moderno e o tradicional dividiam o mesmo espaço público na maior metrópole do país, cuja Centro entrou em decadência, inclusive aquela região da confluência da Rua Antônio de Godói com a Avenida São João, vizinha à Cracolândia.

Quando ficou pronto, em 1966, era um dos edifícios mais modernos de São Paulo. Para projetá-lo, o arquiteto Róger Zmekhol, nascido em Paris, filho de refugiados cristãos da Síria, formado na primeira turma de arquitetura da FAU-USP, se inspirou no minimalismo do alemão Mies van der Rohe, um dos mestres da escola de design Bauhaus. Com sistema de ar condicionado embutido, pisos de ipê e divisórias móveis nos escritórios, seu hall de mármore e aço inoxidável era grandioso, assim como sua belíssima escada caracol, que utilizava os mesmos materiais. O projeto encantou a geração de arquitetos paulistas dos anos 1960.

Suas características arquitetônicas foram copiadas em centenas de prédios comerciais das grandes cidades brasileiras, inclusive Brasília, com banheiros, circulação vertical, infraestrutura hidráulica e elétrica na parte central, com ampla possibilidade de distribuição dos espaços internos até sua “pele de vidro”. Antes de abrigar o INSS, serviu como sede da Polícia Federal em São Paulo, de 1980 a 2003. Ali, o falecido delegado e senador Romeu Tuma anunciou a prisão do mafioso italiano Tommaso Buscetta e a descoberta da ossada do nazista Josef Mengele. Em 13 de dezembro de 1982, levou para o prédio todo o Comitê Central do antigo PCB, que tentara realizar um congresso no centro de São Paulo na semilegalidade. Vazio há 16 anos, o prédio de 11 mil m², desde setembro de 2002, pertencia à União. Por ironia do destino, o responsável pelo Patrimônio da União em São Paulo é Robson Tuma, seu filho.

No governo Dilma, em 2015, com o Brasil em recessão, o ministro Nelson Barbosa autorizou que a propriedade fosse a leilão, mas ninguém quis pagar R$ 21,5 milhões ao governo, que gostava de arbitrar a taxa de lucro de seus parceiros em operações desse gênero, o que geralmente resultava em fracasso. O Sesc, uma organização francesa e o governo federal ainda tentaram transformá-lo num centro cultural, mas a iniciativa não vingou. Em 2012, a Secretaria de Patrimônio da União cedeu o prédio para a Unifesp, que instalaria ali o Instituto de Ciências Jurídicas. O projeto também não foi à frente.

Jóia da coroa
O prédio era uma das jóias da coroa do movimento dos sem-teto de São Paulo, que cresceu verticalmente durante a gestão de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo e se beneficiou do corpo mole da União quanto à situação dos edifícios públicos federais abandonados. Dezenas de imóveis públicos e privados no Centro de São Paulo estão invadidos e reproduzem a mesma situação do Wilson Paes de Almeida, com a diferença de que não são uma torre de vidro. Em nota, a Prefeitura de São Paulo informou que cadastrou 248 pessoas de 92 famílias que morariam no prédio incendiado. Após a tragédia, o jogo de empurra entre as autoridades é o de praxe: o prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), argumenta que o município não podia obrigar as famílias a sair nem pedir a reintegração de posse porque o prédio é da União.


O Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão alegou que o prédio “foi cedido provisoriamente pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU/MP) à prefeitura do município de São Paulo, em 2017, e a previsão é que seria utilizado para acomodar as novas instalações da Secretaria de Educação e Cultura de São Paulo”. O ex-prefeito João Doria, em campanha para o Palácio dos Bandeirantes, disse que o imóvel havia sido controlado por pessoas ligadas a uma facção criminosa, o PCC, com a conivência do movimento de moradores, supostamente ligado do PT.

Os moradores que sobreviveram ao incêndio, cujo número de vítimas é baixo, mas ainda desconhecido, se recusam a ir para albergues da prefeitura e têm um discurso pronto: alegam não que não vivem na rua e reivindicam um lugar para morar. No Centro de São Paulo, onde a força da grana ergue e destrói coisas belas, como diz a canção Sampa, de Caetano Veloso, verdadeiras jóias da arquitetura e do urbanismo estão abandonadas, como o centenário palacete em estilo art nouveau que pertenceu ao presidente Rodrigues Alves, em Higienópolis. O imóvel serviu de sede do Dops paulista e pertence ao INSS. Está desocupado desde 2003 e pode ser invadido em qualquer madrugada fria.

Luiz Carlos Azedo - Nas entrelinhas - CB