Os acusados são soltos quando deveriam estar presos; e são presos, a depender do caso, quando melhor seria que estivessem soltos
Carta ao Leitor: O paradoxo brasileiro - Transcrito da Revista VEJA
No
mundo da aviação, sabe-se que, por trás de todo acidente aéreo, há uma
sequência de erros que explica o triste episódio. Quase sempre é uma sinistra
combinação de falhas humanas com as de equipamentos. Se nem todos esses
equívocos tivessem acontecido simultaneamente, a catástrofe seria evitada e as
vidas que se perderam com a queda da aeronave poderiam ser preservadas.
Guardadas todas as proporções, a libertação do traficante André do Rap tem
semelhanças com a soma de imperfeições que leva um avião a se destroçar em
solo. Membro graduado de uma das facções mais perigosas do Brasil, o criminoso
se beneficiou de uma sucessão de desacertos, que inclui a perda de prazo para a
prorrogação de sua prisão, passa pelo mau funcionamento dos sistemas do STF e
culmina em uma tentativa inoportuna do ministro Marco Aurélio Mello de marcar
posição. Uma diferença de apenas algumas horas e o delinquente ainda estaria na
cadeia, lugar apropriado para quem desempenha sua atividade.
Mas
além das falhas e brechas que permitiram a libertação de um malfeitor de alta
periculosidade, a trajetória de André do Rap revela, numa perspectiva mais
profunda, um outro mal que põe em risco a segurança dos cidadãos brasileiros:
as engrenagens que abastecem as fileiras do PCC, a maior e mais ameaçadora
facção criminosa do país. Aos 19 anos, ele foi preso pela primeira vez com
trinta papelotes de cocaína, em Santos. Não portava armas nem tinha
antecedentes criminais, mas, como estava acompanhado de um comparsa de 17 anos,
recebeu um agravamento de pena por corrupção de menores, sendo levado para o
Carandiru, o famoso presídio paulista extinto em 2002. Começava ali mais uma
carreira no mundo do crime. Considerado inteligente e educado pelos colegas,
André acabou sendo recrutado pelo PCC em troca de segurança na penitenciária.
Fora dela, pagou sua dívida com a organização transformando-se em um de seus
líderes.
Assim
como aconteceu com André do Rap, a superpopulação carcerária brasileira, a
terceira maior do planeta, com mais de 750 000 presos, tem sido base fértil para o
recrutamento feito por organizações criminosas. Alguns entram no sistema por
delitos banais e, uma vez aliciados por esses grupos, tornam-se bandidos de
alto calibre. Um exemplo é o de Edson Chaves de Brito, o Marlboro. Em 2005, foi
detido por furtar seis carneiros e algumas galinhas em Mato Grosso do Sul.
Hoje, é um dos principais membros do bando, condenado a 22 anos de pena por
tráfico de drogas e roubo de estabelecimentos comerciais. Nesta edição, VEJA
faz um mergulho no tema mostrando todo o panorama dessa complicada equação, que
precisa ser desmontada urgentemente. Eis o resumo do paradoxo brasileiro: os
acusados são soltos quando deveriam estar presos; e são presos, a depender do
caso, quando melhor seria que estivessem soltos. Enquanto essa sequência de
erros não for interrompida, as tragédias se repetirão.
Publicado em VEJA, edição nº 2709, de 21 de outubro de 2020