O Estado de S.Paulo
São as prerrogativas que permitem exercer de forma sobranceira o mister advocatício
Não me canso de registrar o necessário e inafastável cumprimento do que
dispõe a Constituição federal. Repetirei mil vezes que o Direito existe
para regular as relações sociais. E dar segurança às pessoas. Sei, em
razão da Constituição, quais serão meus direitos e deveres. Sei, ao
praticar um ato, quais as suas consequências.
Há direitos individuais e coletivos. Os individuais são os mais
prezáveis. Até porque repercutem positivamente, se obedecidos, nos
coletivos. Não é sem razão que a Constituição os arrola em 78 parágrafos
e ainda registra que os direitos e garantias expressados não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios adotados ou constantes de
tratados internacionais, firmados pelo Brasil (Constituição federal,
artigo 5.º).
Tais dispositivos, como toda e qualquer norma jurídica, buscam o justo, o
reto. Buscam a justiça, ao fundamento de que justo é aplicar
rigorosamente o preceituado no sistema normativo. Nesses termos, é preciso administrar, dar, oferecer justiça. E é para
tanto que o Texto Magno abre o capítulo IV com o título Das Funções
Essenciais à Justiça. Arrola quatro instituições para exercê-las: o
Ministério Público, a advocacia pública, a advocacia privada e a
Defensoria Pública. É o que está nos artigos 127 a 135 da Constituição
federal. Todas elas ao lado, naturalmente, do Judiciário, a quem essas
entidades se dirigem para movimentá-lo.
Reporto-me à advocacia privada. E o faço em função de veto aposto pelo
presidente da República a texto da Lei de Abuso de Autoridade, que se
caracteriza se houver violação às prerrogativas profissionais do
advogado (artigo 43), e porque, como parlamentar, sempre defendi essas
prerrogativas. De logo registro que abusa da autoridade o agente público
que ultrapassa os limites da lei. [óbvio que bandidos são comuns em todas as profissões e a classe dos advogados não é uma exceçãoi, assim as prerrogativas do advogado, em alguns casos, dificultam o combate ao crime.
É recorrente, a imprensa noticiar situações em que advogados são flagrados usando prerrogativas em prol de criminosos - seja qual seja o tipo de criminoso a conduta do advogado é reprovável, mas se torna execrável, repugnante, quando busca beneficiar chefes ou integrantes de organizações criminosas - situações que ocorrem com mais frequência.]
A partir desse veto faço duas observações. A primeira: juiz, advogado
(privado, público e defensor) e Ministério Público são iguais. Grifo
iguais. São partes que movimentam a Justiça e deverão ter tratamento
parificado. Respeito institucional entre si. Por isso o advogado é
indispensável à administração da justiça (artigo 133 da Constituição).
Mais, e aqui a segunda observação: o advogado é inviolável por seus atos
e manifestações, nos limites da lei. É, ainda, o artigo 133. Inviolável
é que não pode ser transgredido, desrespeitado. É o seu significado
vocabular (Houaiss, Dicionário).
Qual será a razão dessa regra constitucional? Ela está umbilicalmente
ligada à proteção dos direitos individuais. Basicamente, ao direito ao
contraditório e à ampla defesa (artigo 5.º, LV, da Lei Maior). Daí as
prerrogativas do advogado. Tudo para exercer sobranceiramente o mister
advocatício de defesa e de observância do devido processo legal.
Fui o autor desse dispositivo durante os trabalhos da Constituinte
87/88, [errar é inerente ao ser humano;
Temer, já cometia erros graves de há mais de 30 anos, portanto, já se enquadra, no campo político, na categoria de diabólico.] provocado pelo então presidente da OAB estadual, Antônio Cláudio
Mariz de Oliveira. Dei antes o significado vocabular da palavra
“inviolável”. Mas vamos ver quantas vezes ela é utilizada na
Constituição e qual o seu significado. Agora, jurídico. O referido
artigo 5.º registra ser inviolável a liberdade de consciência e de
crença (VI), a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas (X), a casa (XI), o sigilo da correspondência e das comunicações
telefônicas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo com
autorização judicial (XII). Inviolabilidade plena. Alguém poderia
imaginar lei que reduzisse ou até eliminasse as mencionadas
inviolabilidades? Poder-se-iam eliminar as prerrogativas do Ministério
Público e da magistratura? Decididamente, não. Por que, então, seria
redutível a prevista no artigo 133 da Constituição federal?
Dirão alguns que a inviolabilidade do artigo 133 se submete aos “limites
da lei”. Certo, literalmente. Mas errado sistemicamente. Explico: toda a
estrutura constitucional é enaltecedora dos direitos da pessoa humana.
Não se pode agredi-los. Assim, preservar prerrogativa do advogado não é
norma em seu benefício, mas em favor de todos os que têm vulnerados os
seus direitos. O que a lei poderá fazer para limitar a prerrogativa
profissional é o que já foi feito, ou seja, cai a inviolabilidade se o
advogado for comprovadamente um criminoso ou se tiver se emparceirado
com cliente eventualmente marginal. Desabridamente e amparado pela lei, o profissional poderá agir como
agente de defesa. Volto a dizer: as funções da Justiça são exercidas
plenamente pelos seus formuladores.
Recordo que mencionei a parificação entre as carreiras jurídicas porque
não é possível reduzir as prerrogativas que a Constituição conferiu aos
promotores, advogados e defensores públicos. Volto a perguntar: por que
só o advogado privado? Só porque a ele se entrega o sacrossanto direito
de que ninguém pode ser condenado se houver cerceio ou impedimento à
defesa? Sei, caro leitor, que se tomou o hábito de descumprir a Constituição.
Tanto é assim que, apesar da clareza e da limpidez do artigo 133, que
trata, repito, da inviolabilidade profissional, tempos depois fui
obrigado a propor projeto, afinal convertido em lei, que tornava
inviolável o “local de trabalho do advogado” (Lei Federal n.º 11.767/08,
artigo 7.º, II). Ao fazê-lo, redigi a justificativa dizendo que era
“com grande pudor intelectual” que o apresentava, já que a Constituição
não deixava dúvida quanto à plenitude da inviolabilidade. Bastaria
cumpri-la. Mas como dizia o festejado professor Seabra Fagundes, no
Brasil não basta constar da Lei Maior, é preciso que esteja na lei comum
ou no decreto do Executivo ou, às vezes, na portaria ministerial. É uma
pena que seja assim.
De fora parte os argumentos aqui expendidos, convém ler Lenio Streck,
que sustenta a inconstitucionalidade do veto por agressão à separação de
Poderes (Revista Consultor Jurídico, setembro 2019). Daí por que não
mantê-lo é homenagem que o Legislativo fará aos critérios basilares do
Estado democrático.