O
avanço da tecnologia e a queda na taxa de juro no país estão provocando
mudanças profundas no sistema financeiro brasileiro, uma pequena
revolução silenciosa, com dimensões que ainda passam despercebidas. Nas
últimas semanas, a discussão sobre compras parceladas "sem juros" no
cartão de crédito tomou conta das páginas de jornais e sites, mas a
medida é só uma pequena amostra do que está em discussão.
No
Brasil, os bancos são, acima de tudo, pragmáticos. Defendem seus
negócios e seus ganhos, mas quando percebem que a maré começa a puxar
fortemente para outro lado, deixam-se levar e abraçam as novas ideias
como se tivessem sido favoráveis a elas desde o princípio. Foi assim,
por exemplo, com o crédito consignado, que começou em bancos menores, em
Minas Gerais, com forte apoio do PMDB na época. Foi assim, também, com o recente movimento das "fintechs". Hoje, os dois principais bancos
brasileiros, Itaú e Bradesco, mantêm centros dedicados a start-ups e
empresas de Inovação, o Cubo e o Habitat.
A maré mostrou aos
bancos que viria dessas empresas de tecnologia a mais nova onda de
concorrência no setor, e não de instituições financeiras tradicionais.
Abraçar ideias inovadoras e apoiar empresas menores permitiram que as
instituições financeiras brasileiras começassem a se preparar para uma
briga muito maior no horizonte: a da disputa com as grandes companhias
de tecnologia, como Amazon, Google, Facebook e Apple.
Assim como
os veículos de comunicação, que tiveram de aprender a trabalhar com
essas empresas em um modelo de competição e de parceria ao mesmo tempo,
também os bancos estão no mesmo caminho. Na última semana, por exemplo, o
Bradesco anunciou sua parceria com o Google Pay, para correntistas com
cartão de crédito Visa. O aplicativo dos smartphones com sistema
operacional Android permite pagar compras sem a necessidade do cartão
físico ou da digitação de senhas. Basta aproximar o celular da
maquininha do lojista - a conectividade por NFC permite a comunicação
sem fio e com segurança entre dispositivos próximos. A Apple deve em
breve lançar o mesmo recurso no Brasil -- em seu site, é possível ver
telas com a logo do Itaú aplicado.
O Banco Central está
acompanhando bem de perto a evolução tecnológica e tem se dedicado a
realizar uma série de mudanças nas regras para permitir que esses
avanços não fiquem apenas no ambiente dos bancos, mas que cheguem aos
consumidores e às empresas. O segmento de cartões tem recebido uma
atenção especial. O objetivo é que o cartão de débito seja de fato
utilizado como meio de pagamento. Para ampliar seu uso, será preciso
reduzir a taxa cobrada, hoje um percentual sobre o valor da operação e
dividida em três componentes: o "fee" da bandeira, um custo de
intercâmbio cobrado pelos bancos e um custo cobrado pelo adquirente. Com
a entrada de novas empresas no mercado de adquirentes, como Eleven e
Stone, uma parte dessa taxa já se reduziu. Mas ainda é preciso discutir
como reduzir a taxa de intercâmbio cobrada por bancos e que é negociada
entre a bandeira do cartão e a instituição financeira.
Em países
como os Estados Unidos, a taxa cobrada no débito é mista, ou seja, tem
um valor fixo por operação e um percentual sobre o volume da operação -
US$ 0,20 mais 0,05% sobre operação. A cobrança passa por regulamentação
do governo. Um especialista explica que há espaço para que o Banco
Central brasileiro pressione as instituições a reduzir as taxas porque
em uma venda com débito, o dinheiro está disponível na conta corrente do
comprador. Não há risco de crédito. "Não faz sentido termos taxas para
débito e crédito tão próximas se o risco de um meio e outro é tão
diferente."
No caso do cartão de crédito, há muita polêmica
sobre um possível fim da compra parcelada no cartão sem juros. O foco da
discussão, entretanto, é o de dar transparência para o juro que está
embutido na operação - seja ele pago pelo consumidor ao lojista ou ao
banco que passaria a oferecer uma linha de crédito no cartão. Da mesma
forma como o fim da hiperinflação levou a um ciclo de ajustes em
instituições financeiras e no comércio, também a nova fase de juros mais
baixos deve provocar uma reacomodação.
Algumas grandes redes de varejo
têm hoje uma parte importante de seus ganhos atrelados à cobrança de
juro em vendas parceladas, no cartão de crédito ou não. É natural,
portanto, que haja uma certa queda-de-braço entre grandes lojistas e
bancos para ver quem vai ficar com esse ganho. O desenho final pode vir a
ser o de uma compra ter um preço mais baixo para o pagamento à vista e
dois preços a prazo na cobrança no cartão - um com a taxa de juro
cobrada pelo lojista (financiamento loja) e outro com a taxa cobrada
pelo banco que concedeu o crédito. Nada ainda está definido. Vários
desenhos estão sendo estudados e em todos eles se prevê uma redução dos
prazos de repasse da compra para o lojista, hoje de 30 dias.
Para
as pessoas jurídicas, o governo tem trabalhado desde o ano passado na
formatação da duplicata eletrônica - que agora entrou no pacote de
medidas do presidente Michel Temer para substituir o vazio deixado pela
reforma da Previdência. A duplicata estará ligada aos bancos de dados
fiscais das secretarias estaduais de finanças. O objetivo é casar a
operação física com a transação comercial e financeira, sem a
necessidade de validação em cartórios. Reduz-se a burocracia e o custo
(com esperada redução nas taxas cobradas em antecipação de recebíveis) e
se amplia a transparência e a formalidade.
A duplicata
eletrônica será opcional - a tradicional continuará a ser aceita país
afora. Afinal, como diz uma fonte que acompanha o processo, a tecnologia
avançou muito e continua avançando, mas não dá pra esquecer que o
Brasil tem grandes diferenças regionais. Não é possível comparar a
infraestrutura tecnológica da avenida Faria Lima, em São Paulo, com a de
uma cidade no interior da Amazônia. O que é possível dizer é que, em
cinco anos, o relacionamento do consumidor e das empresas com os meios
de pagamento e de crédito será totalmente diferente do desenho atual.
Raquel Balarin - Valor Econômico
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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
Muito além da compra parcelada sem juro
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