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quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Escândalo de festim - Silvio Navarro

Revista Oeste

A história de um esquema secreto de compra de votos no Congresso que nunca existiu 

Desde que Jair Bolsonaro vestiu a faixa presidencial, o consórcio da imprensa busca de forma implacável um escândalo de corrupção que possa ser equiparado ao Mensalão e ao Petrolão, marcas dos governos do PT. 
Foram dezenas de tentativas até que uma manchete fez sucesso entre os jornalistas ao anunciar a existência de um “Orçamento secreto”.  
É um esquema tão sofisticado que nem os próprios jornais conseguem comprovar os crimes.

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Essa história surgiu em maio do ano passado nas páginas do Estado de S. Paulo. De acordo com a publicação, o governo usou uma parte dos recursos do Orçamento destinado às chamadas emendas parlamentares para obter apoio de um grupo de deputados que compõe o famoso “centrão”.

Em primeiro lugar é preciso esclarecer que a peça orçamentária é manejada e aprovada pelo Congresso Nacional. Cabe ao Executivo enviar o seu planejamento de despesas e arrecadação, mas o ajuste é feito pelo Legislativo. Outro detalhe importante é que esses recursos são legais. O resto é o jogo político que acontece desde que Brasília existe.

A partir dessa premissa, algumas perguntas podem ser respondidas: quem é o responsável pela análise do Orçamento?  
Uma comissão mista formada por 12 deputados e 12 senadores, com o mesmo número de suplentes. 
Esse grupo debate e delibera sobre uma série de matérias até chegar à LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias). 
É ela que define quais serão os gastos prioritários do governo no ano seguinte. 
Da LDO surge a LOA (Lei Orçamentária Anual), que é o Orçamento propriamente dito e vai à votação no fim do ano.

A caneta do parlamentar
Desse bolo do Orçamento, uma fatia é reservada aos parlamentares: as emendas. São recursos que os deputados apadrinham, ou seja, “carimbam seus nomes”, destinados a obras em seus redutos eleitorais (reformas de praças, construção de quadras esportivas, asfaltamento, compra de ambulâncias, etc.). No ano passado, cada um teve direito a indicar R$ 16 milhões. Outra modalidade são as emendas de bancada: congressistas do mesmo Estado unem suas cotas para a mesma finalidade (uma grande obra, como um hospital, por exemplo). O valor total foi de R$ 7,2 bilhões. Ainda podem ocorrer as emendas setoriais e as das comissões, mas elas nunca sobrevivem.

Em 2019, contudo, o Congresso criou mais uma fórmula para valer a partir do ano seguinte. O código técnico é RP9 (resultado primário; e o número se refere ao nono tipo de despesa nas planilhas). Mas esqueça esse código: é a emenda do relator.

Como o próprio nome já indica, a caneta do parlamentar escolhido para ser relator é disputadíssima. Isso porque é ele quem define para onde serão remetidos até R$ 20 bilhões. Esse montante, portanto, não sai do Congresso com o nome de determinado deputado ou senador — mas, sim, do próprio relator. É aqui que nasceu o escândalo de festim batizado de “Orçamento secreto”.

“Todos nós temos claro que essa adjetivação de ‘secreto’ é muito injusta. As emendas acontecem desde 1988, e ninguém nunca levantou polêmica sobre isso porque ninguém as conhecia” (Arthur Lira, presidente da Câmara)

O tratoraço que não existiu
Ao descobrir que não havia transparência para o destino de bilhões em emendas, o consórcio de imprensa tentou a todo custo colocar as digitais do governo Bolsonaro na suposta picaretagem do Congresso. O Estadão, autor da primeira reportagem sobre o caso, afirmou: “Um esquema montado pelo presidente, no final do ano passado, para aumentar sua base de apoio no Congresso criou um orçamento paralelo”.
 
(...)

É totalmente diferente. O Mensalão era dinheiro. Quando morei na Venezuela, eu era adido militar. Lembro do auxiliar do adido da República Dominicana que dizia que o Hugo Chávez comprava os parlamentares a billete limpio (com cédulas). Ou seja, colocava o dinheiro na mão” (general Hamilton Mourão, vice-presidente da República)

Os verdadeiros padrinhos
No fim do ano passado, os partidos de esquerda decidiram levar o tema — assim como faz com todos os outros — ao Supremo Tribunal Federal (STF). A ministra Rosa Weber chegou a suspender o pagamento das emendas de relator. O dinheiro só foi liberado depois que o Congresso aprovou a obrigatoriedade de incluir os nomes dos verdadeiros padrinhos das emendas numa plataforma eletrônica.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), determinou que os parlamentares informassem por escrito os pedidos incluídos como emendas do relator desde 2020, quando entrou em vigor. Os últimos relatores do Orçamento foram os deputados Domingos Neto (PSD-CE) e Hugo Leal (PSD-RJ) e o senador Márcio Bittar (MDB-AC). Quase 70% dos congressistas responderam (404 dos 594). O Senado também publicou um ato conjunto com a Câmara para “assegurar mais publicidade” sobre os pedidos de recursos.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), reclamou de nova interferência do Supremo no Congresso. “As ações tratam eminentemente de matéria interna corporis, tendo em vista que a previsão de emendas do relator não é matéria de ordem constitucional e está prevista apenas na Resolução n° 01/2006-CN”, disse em ofício.

Não se tratava de uma questão para análise do Supremo, mas, sim, do Tribunal de Contas da União (TCU). A Corte aprovou por unanimidade as contas de Jair Bolsonaro. O parecer do ministro Aroldo Cedraz afirma que os princípios constitucionais e legais foram respeitados. Acompanharam o julgamento presencialmente o ministro Paulo Guedes (Economia), o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o advogado-geral da União, Bruno Bianco.

Memória seletiva
Brasília reúne uma triste coleção de casos de desvios de recursos públicos costurados no Congresso. O mais famoso foi o dos “anões do Orçamento”, ocorrido em 1993. Uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) emparedou 37 políticos num roubo de R$ 100 milhões. Dezoito pagaram efetivamente o preço. O dinheiro saía dos cofres por meio das tais emendas, mas acabava nas mãos de políticos e lobistas. A trama só foi descoberta porque um assessor era investigado por ganhar 56 vezes na loteria num único ano e tramava matar a mulher. Preso, entregou os políticos. Anos depois, o assalto se repetiu com a “máfia dos sanguessugas”.

Todos esses episódios foram protagonizados pelo chamado “baixo clero”, jargão que designava parlamentares sem grande exposição, mas que caiu em desuso desde que esse grupo assumiu o poder na Câmara com Eduardo Cunha (PTB-RJ). Durante duas décadas, independentemente de quem era o presidente da República, quem sempre cuidou do manejo do Orçamento no Congresso foi o ex-senador Romero Jucá (MDB-RR).

Qualquer busca no Google com as seguintes palavras “governo libera emendas”, seguidas do nome de um ex-presidente — Lula, Dilma, Temer, FHC —, retornará centenas de manchetes. É prática recorrente dos governos atender a pleitos dos parlamentares para manter a fidelidade de sua base no Congresso. Goste-se ou não do modelo, é algo que se chama articulação política. No governo Bolsonaro, passou a ser tratada pelo consórcio de imprensa como um escândalo de compra de apoio parlamentar.

Para a memória seletiva, recomenda-se a leitura do quarto capítulo do relatório do ex-ministro do STF Joaquim Barbosa, relator da ação penal do Mensalão. “É evidente o potencial exercido pelos pagamentos sobre as votações dos parlamentares”, disse.

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Silvio Navarro, colunista - Revista Oeste