A brasileira que comanda a luta contra o tabaco na
OMS diz que pesquisas enganosas, lobby, contrabando e corrupção freiam o
combate ao cigarro no mundo
(Nicolas Righetti/Lundi13/.)
Doutora em saúde pública, a paulista Vera
Luiza da Costa e Silva, de 66 anos, comanda a secretaria da Organização
Mundial da Saúde (OMS) que cuida do tratado internacional para o
controle do tabaco. Nessa posição, que ocupa desde 2014 (em sua segunda
temporada na OMS), ela é dona de visão única sobre como 180 países e a
União Europeia estão se mexendo para baixar o consumo de tabaco. Vera
tem nas mãos a missão de estabelecer metas e acompanhá-las — uma
extensão em escala global do trabalho que já fez no Brasil, onde
desempenhou papel decisivo na consolidação das políticas de combate ao
fumo. “Comecei atuando como pneumologista, no tratamento de câncer, mas
entendi que poderia ser mais útil agindo na frente da prevenção da
doença”, afirma Vera, uma não fumante convicta. Em seu escritório em
Genebra, ela concedeu a entrevista a seguir.
O número de fumantes no mundo ficou estável neste século, ao
redor de 1,1 bilhão de pessoas. É um sinal de que a convenção global
para o controle do tabaco não está conseguindo cumprir sua missão? Houve um avanço inequívoco na batalha contra o tabaco: em 2000, 27% da
população mundial era de fumantes, hoje são 20%. A questão é que a
população cresceu, o que fez o número absoluto permanecer no mesmo
patamar de 1 bilhão. É um número alto mesmo, o que indica que essa
guerra não é nada fácil. O ritmo de implantação das políticas de
controle me preocupa, e por isso lanço um alerta global: mantida a
velocidade atual, não será possível cravar a meta de reduzir o consumo
de tabaco em 30% até 2025. A queda deve ficar em 22%.
Quem não está fazendo a lição de casa? Um grupo de
países está claramente atrasado na corrida contra o fumo. Na África e no
Oriente Médio, por exemplo, as medidas têm sido bastante insuficientes
para frear o consumo. No caso africano, a indústria anda em plena
expansão. No Oriente Médio, onde em alguns países cerca de cinco de cada
dez adultos homens fumam, pesa cada vez mais uma questão cultural na
cruzada contra o tabaco. As mulheres estão lentamente entrando nesse
mercado e, assim, abrindo um nicho até então inexplorado e promissor
para a indústria do tabaco.
Qual a sua avaliação sobre o trabalho de combate ao fumo no Brasil?
O país registra um declínio extraordinário de fumantes graças a uma
política que não foi interrompida ao sabor da troca de governantes, como
é tão comum. Em 1989, no início da batalha contra o cigarro, mais de um
terço dos adultos fumava; atualmente, são 11%. Esse resultado se deve a
um monte de fatores que se demonstraram eficazes: veto à propaganda,
advertência nos maços sobre os malefícios do cigarro, elevação de
impostos, proibição de fumar em lugares fechados. Do ponto de vista
histórico, são avanços relativamente recentes. Temos de lembrar que a
indústria brasileira viveu sem regulamentação até as vésperas do século
XXI.
(...)
“As empresas perdem com a falsificação, não com o
contrabando de cigarros, que pode ser muito rentável. Estima-se que uma
de cada três unidades vendidas no Brasil é contrabandeada”
Mas a indústria não perde com o contrabando? As
empresas perdem com a falsificação, não com o contrabando de cigarros,
que pode ser muito rentável para elas. Vou dar um exemplo: o Paraguai,
de onde vem parte importante do contrabando que entra no Brasil, produz
muito além do que os paraguaios consomem — isso à base de impostos
baixos, já prevendo que aquele excedente atravessará a fronteira de
forma ilegal. A prova da presença de contrabando é a quantidade de maços
sem fotos nem advertências exigidas pela legislação brasileira. É uma
evidência de que não foram produzidos no Brasil. Um estudo bastante
sólido mostra que aproximadamente 70% do mercado ilícito de cigarro no
mundo é impulsionado pelas próprias empresas de tabaco. Quanto mais
corrupto o país, maior é o raio de ação da indústria.A Fiocruz, órgão de
pesquisa de excelência acima de qualquer suspeita, tem em seu site o
Observatório sobre as Estratégias da Indústria do Tabaco no Brasil, onde
lista os políticos e instituições que mais recebem dinheiro dessa
indústria. Aparecem ali organizações como o Instituto Brasiliense de
Direito Público (entidade da qual o ministro do STF Gilmar Mendes é um
dos sócios fundadores) e até a Fundação para um Mundo Livre de Fumo,
100% financiada pela indústria com o objetivo de promover o uso de
cigarros eletrônicos.
(...)
As novas gerações vêm aderindo à onda dos cigarros
eletrônicos, sobretudo em países da Europa e nos Estados Unidos. Eles
são mesmo menos nocivos? Esses cartuchos de nicotina de fato
produzem menos substâncias tóxicas. Não envolvem fumaça, mas vapor, e
ele é inalado. Não quer dizer que não façam mal. Muita gente defende a
tese de que eles podem ser uma alternativa para quem não consegue ver-se
livre do vício de jeito nenhum, mas aí a ciência recomenda cautela:
ainda não há comprovação de que funcionem como substituto do cigarro
comum. A experiência de muitos países mostra
que, às vezes, o fumante fica com os dois cigarros, o tradicional e o
eletrônico. Outro problema se dá justamente com as novas gerações: as
versões eletrônicas, cheias de sabores, são um convite para que crianças
tomem contato com o fumo cada vez mais cedo. Existe até a turma que
leva esses cigarros para a escola dentro do estojo.
“Os cigarros eletrônicos, cheios de sabores, são um
convite para que crianças tomem contato com o fumo cada vez mais cedo.
Uma turma leva esses cigarros para a escola no estojo”
Há hoje muitas crianças fumantes? No Brasil, 18% na
faixa dos 13 aos 15 anos já experimentaram cigarro. Isso é chocante e
traz preocupação. Quanto mais cedo se der esse contato, maior será o
risco de a criança tornar-se dependente.
A mais recente geração de cigarros eletrônicos funciona à
base de tabaco, não de nicotina. Como eles se situam na escala de risco à
saúde?
Publicado em VEJA de 9 de janeiro de 2019, edição nº 2616