Coluna na Folha de S.Paulo
O Brasil padece de muitos males, mas nada é mais nefasto que o populismo judicial
O Supremo deu início nesta quinta, dada a conjuntura, a um dos
julgamentos mais importantes da sua história. Decidir se o país vai ou
não aplicar um dispositivo constitucional, que integra o conjunto dos
direitos fundamentais e é cláusula pétrea, não deixa de ser exótico. Mas
a tanto fomos levados. [A cláusula pétrea não pode sequer ser emendada - uma forma de impedir modificações em normas constitucionais, que os próprios constituintes de então consideravam absurdas - mas, a CF não estabelece o conceito de 'trânsito em julgado', assim, não precisa detonar o manto da petricidade de um dispositivo constitucional, bastando modificar parcialmente um artigo do CPP, de forma a deixar claro que após a Segunda Instância o réu deve ser preso, mas, sem perder o direito de recorrer as instâncias superiores, ainda que encarcerado.]
Nas democracias, o direito é o sumo e o vértice do pacto civilizatório.
Ninguém lerá ou ouvirá este colunista a sustentar: “Lula é inocente”.
Não sei. Não sou Deus nem tenho acesso à sua consciência. Mas afirmo sem
receio: “Lula foi condenado sem provas num processo viciado”. Chega, pois, a hora da escolha a um só tempo moral e ética: prefiro
correr o risco de absolver um culpado a condenar um inocente. Desdobro o
pensamento: o inocente acusado só tem a seu favor a ausência de provas.
Se esta passa a ser irrelevante, culpados e inocentes se igualam sob a
sanha de justiceiros. [o expresso no destaque tem alguma relevância, desde que o condenado não responda a vários outros processos, sempre por corrupção,lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, etc.]
Na quarta (16), o ministro Roberto Barroso, do STF, evidenciou a que
descaminhos pode se deixar conduzir um juiz. Na sua intimidade com
Deltan Dallagnol, em vez de o maduro instruir o jovem destrambelhado,
foi o destrambelhado que desencaminhou o maduro. Já sentenciou Antero de
Quental: “A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade
numa criança.” Escreveu isso aos 23. Ao comentar o julgamento das ações que tratam da constitucionalidade do
artigo 283 do Código de Processo Penal, que define a pena de prisão só
depois do trânsito em julgado —em consonância com o inciso LVII do
artigo 5º da Carta —, o doutor trocou a toga por uma touca ninja.
Disse a seguinte maravilha, depois de evidenciada a mentira de que o
cumprimento da Constituição libertaria 190 mil presos, incluindo
homicidas: “Os que são criminosos violentos, em muitos casos, se
justificará a manutenção da prisão preventiva. Portanto, no fundo, no
fundo, o que você vai favorecer são os criminosos de colarinho branco e
os corruptos”. Eis a demagogia barata a serviço do populismo rasteiro da extrema
direita. Explico. O criminoso violento continuará na cadeia com base no
artigo 312 do Código de Processo Penal: risco à ordem pública ou de não
cumprimento da lei penal. [percebam o absurdo que representa eventual decisão do Supremo mandando libertar os presos antes da condenação ser confirmada nas instâncias superiores: para manter preso um bandido condenado em segunda instância por um determinado crime, um juiz do primeiro grau terá que decretar sua prisão preventiva -alguns defensores do 'solta geral' já defenderam também, manter presos condenados mediante o recurso da prisão temporária.]
O mesmo pode acontecer com o criminoso do colarinho branco, ora essa!
Também ele está sujeito a tal artigo, com o acréscimo do risco à ordem
econômica. E se já não representar risco nenhum? Então aguardará em
liberdade os recursos aos tribunais superiores se forem cabíveis. Ocorre que o doutor atribuiu-se a missão de combater a corrupção mesmo
acima da lei. Ou abaixo. Assim como a extrema direita defende a tortura
contra criminosos comuns [a tortura é indefensável, aliás,nunca foi utilizada no Brasil - exceto alguns casos nos tempos do Brasil Colônia; o que ocorre é que alguns insistem em considerar interrogatórios enérgicos como tortura.] (e, no passado, contra adversários políticos),
Barroso não se importa em rasgar a Carta sob o pretexto de caçar
corruptos.
Essa é sua nova fachada identitária. Que importa que tal desiderato se
dê ao arrepio da Constituição, ameaçando direitos de quem corrupto não
é? Paladinos não dão bola para essas firulas. Já houve um tempo no
Brasil em que, contra a subversão, valia tudo.
Na mesma quarta, numa altercação com o ministro Alexandre de Moraes,
Barroso evidenciou a sua insatisfação com um voto do colega, que estava
devidamente ancorado numa lei, que, por sua vez, está amparada pela
Constituição. E tonitruou: “Acho que dinheiro público tem de ter contas
prestadas” (sic). E quem não acha? A sugestão óbvia, em sua língua troncha, era a de que
qualquer voto diferente do seu implica que o colega defende o assalto
aos cofres. Moraes teve de lembrar ao doutor, que levou um pito oportuno
de Dias Toffoli, que um juiz impõe as consequências aos faltosos
segundo dispõe a lei, não o arbítrio pessoal.
O Brasil padece, sim, de muitos males. E a corrupção é um deles. Mas
nada é mais nefasto do que o populismo judicial. Pior quando atravessa o
umbral das cortes superiores. Nas democracias, o devido processo legal
pode combater os corruptos e preservar o Estado de Direito. Já o
populismo judicial corrompe também o combate à corrupção. A política que aí está é a consequência prática das utopias de Barrosos, Dallagnois e outras flores do mesmo pântano.
Reinaldo Azevedo, jornalista - Coluna na Folha de S. Paulo