A tragédia num prédio público em São Paulo expõe uma história pouco conhecida: o governo é o maior administrador imobiliário do país, mas acumula resultados catastróficos
Por trás
da tragédia da ocupação, incêndio, desabamento e morte num prédio público no
Centro de São Paulo há uma história pouco conhecida: o governo federal é o
maior administrador imobiliário do país, mas acumula resultados catastróficos
na gestão desse patrimônio. Estima-se
em 652,6 mil o número de imóveis de propriedade da União. Dados do Ministério
do Planejamento indicam a existência de outros 2,3 mil alugados pelo governo.
O
patrimônio público cresce de forma constante, com a incorporação de
propriedades de devedores do Erário. Por mais incrível que pareça, depois de
129 anos de República, a burocracia federal ainda não conseguiu ter uma
dimensão precisa, o valor exato e dados confiáveis sobre os imóveis da União.
Nem mesmo sobre quem são as pessoas e empresas locatárias e ocupantes das suas
edificações e terrenos nos 5.570 municípios. O
cadastro federal não é confiável. Relaciona 652,6 mil imóveis e situações
esdrúxulas, como as detectadas em recente auditoria. Eis algumas:
- existem
864 terrenos com uma área total inferior a 15 metros quadrados;
- pelo
menos 27 imóveis estão cadastrados com uma área igual a "ZERO";
- entre as
pessoas e empresas locatárias, pelo menos 26 mil sequer existem para a Receita.
Não têm identificação (CPF ou CNPJ) localizável;
- contam-se
36 mil nomes de pessoas físicas na relação de locatários da União que,
comprovadamente, morreram há muito tempo;
- outras
1.112 pessoas nasceram antes do século XX. Teriam mais de 117 anos;
dezenas
são menores de 16 anos;
- há um
grupo de 57 locatários (pessoas e empresas) registrados com nomes que incluem
dígitos — algo como “José” ou “Cia.”, “1,2,3,4”...
A
negligência é obra de sucessivos governos. E um dos resultados é o desperdício
de dinheiro: apesar do patrimônio, a administração federal gasta mais do que
recebe com aluguel de imóveis. A despesa
pública com locações imobiliárias para atividades burocráticas e prestação de
serviços é de R$ 1,6 bilhão por ano. Isso equivale ao dobro daquilo que o
governo recebe com aluguel de bens a particulares, pessoas e empresas. O quadro
piora com o calote privado. O governo cobra taxas — além do aluguel — dos
ocupantes ou beneficiários de propriedades da União. Em tese, existem 519.855
imóveis públicos cujos ocupantes estão sujeitos ao pagamento. Na vida real, a
maioria simplesmente não paga: “Estima-se em, aproximadamente, 60% de taxa de
inadimplência no pagamento de taxas de ocupação e foro devidas”, repetem
relatórios oficiais dos últimos 24 meses.
São 312
mil os ocupantes de imóveis públicos que devem e não pagam. O Ministério do
Planejamento, que abriga a Secretaria de Patrimônio da União, informa ter
iniciado “processo de cobrança administrativa” dessas pessoas e empresas. Dentro
desse grupo de devedores estão 12,6 mil pessoas e empresas, situados em 14
estados e no Distrito Federal, com débitos individuais superiores a R$ 500 mil.
Juntos, somam uma dívida de R$ 566,7 milhões. Sob as
cinzas paulistanas tem-se um histórico de incúria com bens públicos, pontuado
pela manipulação política da miséria e pela impunidade.
José Casado - O Globo