As marchinhas de carnaval na era da Lava-Jato não poupou ninguém de sua ironia bem-humorada
Não
sobrou ninguém em pé. O Brasil da Lava-Jato emergiu nos blocos e nas escolas de
samba numa bem-humorada devassa política. O
compositor João Roberto Kelly expôs a fadiga com o Judiciário e seu augusto
tribunal em marcha nacional:
“Alô,
alô, Gilmar/ Eu tô em cana, vem me soltar/ Eu roubei, eu roubei, eu roubei/ Não
estou preso à toa/ Mas no mundo, não há quem escape/ De uma conversinha boa.”
No Rio, o
bloco Imprensa Que Eu Gamo algemou com romantismo:
“Quando a
gente se encontrar/ Nem Gilmar vai nos soltar.”
A mineira
Orquestra Royal evoluiu na mordacidade das planilhas com nomes e codinomes:
“Relaxa o
Garotinho/ E solta o Bicudo/ Abraça o Mineirinho/ Com Supremo com tudo/ Cuida
da Rosinha/ Adula o Angorá/ Libera o Barata/ E faz acordo com Jucá.”
Em
Campinas (SP), os Marcheiros vislumbraram uma feição peculiar no horizonte da
corrida presidencial:
“Na
aristocracia/ Desponta um nariz descomunal/ Com vontade de se enfiar/ No pleito
eleitoral.”
Boca
Nervosa emoldurava o sorriso na tela do YouTube, enquanto desconstruía outra
candidatura (embargada em juízo) em “O homem mais honesto do Brasil”:
“Com
tanta honestidade/ É a nossa Santidade/ No Vaticano tá rolando um zum-zum-zum/
Ele foi canonizado e será pontificado/ O Papa Luiz 51/ Ei, ei, ei, que beleza/
Ele é mais santo que a Madre Teresa/ Acredite quem quiser/ É mais honesto que
Chico Xavier.”
Prefeitos
e governadores ascenderam a um grupo especial. Em São Paulo, por exemplo,
ouvia-se:
“É buraco
na rua/ É o mato crescendo/ É um Deus nos acuda/ Quando está chovendo/ O farol
não funciona/ A enchente aparece/ Liga 156, e nada acontece/ Enquanto isso, o
prefeito gariiii…/ Fala de São Miguel/ E sonha com o (palácio do) Morumbi/ É
isso aí!”
Em Belo
Horizonte, João Batera e Dimas Lamounier retrataram a desilusão na periferia
com gerações de governantes:
“Há
tempos tô esperando, esperando o metrô/ Eu era criancinha e hoje sou avô/ Tem
mais de 30 anos e ainda não chegou/ Cadê a verba, desapareceu/ Será que tá em
Brasília, ou o gato comeu.”
A 500
quilômetros, na Costa Atlântica, o Simpatia é Quase Amor insuflava Ipanema:
“Ensaio
de escola? Ele mela!/ Roda de samba? Atropela!/ Macumba? Não tolera!/ Só gosta
de bloco Nutella!/ Ele não cuida? Nem zela!/ Casa de jongo? Cancela!/ Em nome
de Deus? Apela!/ Qual o nome do hômi?/ É (...)
Pelos
botequins, Luís Filipe Lima e Alfredo Del-Penho puxavam o coro:
“Eu
trabalho o ano inteiro/ E ainda acendo uma vela/ Só pra poder pagar/ O IPTU pro
Crivella.”
De São
Cristóvão à Sapucaí, milhares do Tuiuti suplicavam pelo fim da servidão,
decretada há 130 anos:
“Meu
Deus/ Meu Deus/ Se eu chorar não leve a mal/ Pela luz do candeeiro/ Liberte o
cativeiro social.”
Dominante,
a crítica política aberta, mordaz, atrevida e até herética sugere que no Brasil
da Lava-Jato floresce o desencanto, mas se renova a aposta num futuro diferente
daquilo que o futuro costuma ser na Quarta-Feira de Cinzas.
José Casado, jornalista - O Globo