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segunda-feira, 11 de julho de 2016

Diplomacia e democracia

A democracia perdeu o seu valor universal, vindo a ser manipulada segundo as conveniências particularistas do momento 

A diplomacia passa frequentemente ao largo dos interesses dos cidadãos brasileiros. Em qualquer disputa político-eleitoral, questões externas não fazem parte da agenda propriamente política. Logo, esse importante setor da vida nacional não recebe a atenção devida. Contudo, o novo governo Temer, graças à atuação de seu ministro de Relações Exteriores, senador José Serra, está tomando importantes iniciativas, que têm impacto direto no terreno da política nacional. 

O governo petista havia tornado essa área um instrumento de suas posições partidárias mais retrógradas. O PT considerou a diplomacia uma prolongação de sua doutrina bolivariana, alinhando o país às posições socialistas/comunistas do século XX. A democracia perdeu o seu valor universal, vindo a ser manipulada segundo as conveniências particularistas do momento. 

O governo Temer está recolocando a questão em sua verdadeira dimensão, rompendo decisivamente com essa orientação ideológica. Busca o bem da nação, e não o contentamento ideológico de um partido. Diplomacia é instrumento de um país, e não de um partido. Exemplo disso é o tratamento que o ministro Serra está dando ao governo Maduro, tomando iniciativas que venham a impedi-lo de assumir a presidência rotativa do Mercosul. Tal orientação se situa em linha de continuidade com sua defesa dos opositores presos e através de várias mensagens sobre os seus procedimentos nada democráticos. Uma linha demarcatória está sendo desenhada.

Esse assunto é particularmente importante porque diz respeito ao que esse governo e o anterior consideram como democracia. A acepção de um e outro é completamente distinta.
Para os governos petistas, os governos bolivarianos daquele país seriam exemplos de democracia. O ex-presidente Lula chegou mesmo a dizer que havia excesso de democracia sob o governo Chávez. A presidente Dilma foi conivente com todas as violações da liberdade sendo lá cometidas, chegando a suspender o Paraguai do bloco, por discordar da “democracia” daquele país. 

O que lá estava e está em curso?  Pode-se, assim, caracterizar a linha mestra do bolivarianismo: a subversão da democracia por meios democráticos. Na tradição socialista/comunista do século XX, a tomada do poder foi sempre defendida como um ato de violência revolucionária, mediante o uso da força. Daí nascem símbolos como a tomada do “Palácio de Inverno” na Rússia. Assim foi também em Cuba, com seus “revolucionários” em uniforme militar, também tomando pela violência os símbolos do poder. 

Revolução e violência estavam umbilicalmente ligadas. O uso da violência era o ato inaugural desta forma de fazer política, que se prolongava, depois, na dominação violenta de seus cidadãos, tornados meros servos do Estado. A liberdade foi extinta desde esse momento inicial. A criatividade da doutrina bolivariana consistiu em uma inovação, depois tornada corriqueira na esquerda latino-americana. O ato violento de tomada do poder foi substituído por um processo eleitoral, que seria, então, o momento inicial da extinção progressiva das liberdades. A democracia seria devorada aos pouquinhos, via uma conquista da opinião pública. É como se a liberdade e a democracia devessem desaparecer sem que os cidadãos se dessem conta deste processo. 

A esquerda dissociou, desta maneira, a revolução da violência, com o intuito de melhor conseguir a adesão da sociedade. Aparentemente, a democracia estaria sendo respeitada, quando, na verdade, estava sendo completamente subvertida. Note-se a “evolução” política do bolivarianismo na Venezuela, sendo esse processo, depois, imitado em outros países. O governo de Chávez, progressivamente, começou a sufocar a imprensa livre e os meios de comunicação. Uma vez tendo conquistado o poder, sua tarefa consistia em manipular a opinião pública. Quanto mais silenciosa fosse, melhor para sua dominação totalitária.

Ato seguinte, controle do processo legislativo, de tal maneira que a Câmara dos Deputados passasse a ser uma mera correia de transmissão de suas ordens, sem nenhuma iniciativa própria. A aparência democrática permanecia, pois a instituição legislativa continuava existindo, embora completamente evacuada de sua função constitucional. Chávez passou a legislar por decreto, instituindo-se em Poder Legislativo, além, evidentemente, de manter suas prerrogativas executivas. 

A próxima etapa consistiu no amordaçamento completo do Poder Judiciário, de tal maneira que este se lhe tornasse completamente subserviente. Embora tenha deixado de ser um poder independente, a sua mera “existência” servia como uma aparência de constitucionalidade, como se prender opositores e eliminar manifestantes fossem atos “legais”. Sempre poderia aduzir que a lei foi respeitada, sem precisar que ele próprio tinha se tornado a fonte e o braço da própria lei. 

Durante todo esse processo, o Exército se tornou uma espécie de guarda pretoriana, a serviço de Chávez. Perdeu totalmente a sua missão constitucional, vindo a ser um mero instrumento de operação e consolidação do poder bolivariano. Seu lema “socialismo o muerte” bem mostra a sua deformação. Na verdade, tal bandeira deveria significar: socialismo para os donos do poder e morte para os venezuelanos. 

A violência revolucionária não desapareceu, apenas ganhou novos contornos com a repressão aos cidadãos. Milícias foram criadas e armadas com o único intuito de aterrorizar as pessoas e calar os opositores. São meros instrumentos da política bolivariana. A liberdade, sua maior vítima. As instituições democráticas são, então, progressivamente desmontadas, destruídas. Enquanto isso, no Brasil, os petistas e afins aplaudiam esse processo, dizendo, pasmem!, defender a democracia. Até um mínimo de pudor desapareceu.

Logo, quando presenciamos as escaramuças diplomáticas em torno da questão de se Maduro deve ou não assumir a presença rotativa do Mercosul, devemos ter presente que estamos diante de uma questão plena de significado e, sobretudo, de consequências.

Fonte: Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - O Globo