Pelo apego ao poder e o currículo cheio de acusações, o homem que comandará o novo ato do impeachment possui incrível semelhança com o que liderou o seu encaminhamento na Câmara
Começa o segundo ato do mais espetacular embate político das últimas décadas. Muda-se o cenário e o mestre de cerimônias. Um deixa os holofotes – a contragosto, é verdade – e abre espaço para o outro brilhar. Um espectador desavisado – que perdeu a cena em que o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), entregou ao seu par do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), o comando do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, na segunda-feira 18 – pode, no entanto, achar que continua preso na mesma novela de dias atrás, mas que parte da plateia começou a achar que o vilão virou mocinho. É uma confusão compreensível, justificada pela incrível semelhança entre os dois protagonistas do Congresso. Pelo apego ao poder, a disposição de manipular o Legislativo e a capacidade de acumular acusações de corrupção e outras ilegalidades sem serem punidos, pode-se dizer que Renan é o Cunha do Senado. Ou, sob outra ótica, que Cunha é o Renan da Câmara.
Seja pelos estilos políticos, seja pelos
currículos manchados, tanto o homem que sai de cena como aquele que
entra no foco principal do julgamento de Dilma são, da mesma forma,
nocivos ao País. Deveriam ser apeados dos cargos que ocupam e já teriam
sido não fossem as infindáveis manobras que comandam nas casas que
dirigem e a lentidão com que o Judiciário analisa os processos que
correm contra ambos. Os interesses políticos que os cercam, porém, é os
que os distingue. Até domingo 17, data da votação que aprovou na Câmara o
encaminhamento do impeachment para o Senado, o governo e seus aliados
apontavam que, em função das acusações que sofria na esfera da Operação
Lava Jato, Cunha não tinha legitimidade para conduzir o processo. Agora
que o caso está nas mãos de Renan, também alvo dos investigadores da
Polícia Federal e da Procuradoria Geral da República, não fazem
ressalvas e até lhe servem de claque.
O show de Renan tem andamento diferente do de Cunha. Na terça-feira 19, o presidente do Senado anunciou em plenário o rito do processo de impeachment na Casa. Enquanto o fluminense adotou o modelo de decisão autocrática, a fala do alagoano foi precedida por reuniões com os líderes partidários, com Dilma e até com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski. Respaldado pelo Regimento Interno da Casa, o senador optou por um roteiro mais demorado. A instalação da comissão especial que analisará a admissibilidade do pedido está prevista somente para a segunda-feira 25.
A oposição
protestou, usando o mesmo regimento para reivindicar um rito mais
abreviado – é o que a sociedade brasileira espera em momento tão
delicado do país. Além de não ceder aos apelos dos adversários, Renan
comunicou ainda sua decisão de transferir ao ministro Lewandowski toda a
condução do processo caso ele seja admitido, e não só o julgamento do
mérito. “O Senado não está fazendo noticiário do dia-a-dia, está fazendo
a história do Brasil. Então, nós temos de agir com toda a
responsabilidade”, disse Renan. “Meu compromisso com a história não
permitirá que eu seja chamado de canalha, por ter atropelado o prazo da
defesa ou por ter dado mais um dia para o prazo da denúncia. Eu não vou
escrever esse papel na história do Brasil”. Os governistas aplaudiram.
A tese da falta de legitimidade de Cunha
foi reproduzida à exaustão pelos aliados de Dilma durante a votação na
Câmara. O deputado fluminense é réu no Supremo Tribunal Federal (STF) e
alvo de um pedido de afastamento do cargo de autoria do procurador-geral
da República, Rodrigo Janot. No segundo ato, porém, a Lava Jato que
servia ao governo como argumento para contestar Cunha já não vale, pelo
menos para o elenco da situação, em relação a Renan. A decência
legitimamente exigida por governistas de Cunha simplesmente se torna
desimportante quando o condutor do processo de impeachment é notadamente
um “contemplador” de interesses do governo. Isso porque a esperança de
Dilma e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de barrar o
inevitável andamento do processo de impeachment está depositada no
presidente do Senado. O alagoano é hoje o integrante do PMDB que melhor
conversa com o Palácio do Planalto, além de ter uma relação atritada com
o vice-presidente, Michel Temer. Mas, a exemplo, de Cunha tem sérios
problemas com a Justiça. O senador é alvo de nada menos que nove
inquéritos no STF, suspeito de ser um dos beneficiários do Petrolão.
Assim, a indignação que vale para Cunha deveria valer para Renan.
Mas não é apenas o protagonismo no processo
de impeachment que coloca o presidente do Senado sob os holofotes. Na
segunda-feira 18, enquanto Renan recebia das mãos de Cunha a decisão da
Câmara pela admissibilidade do processo de impeachment contra Dilma, o
ex-diretor internacional da Petrobras Néstor Cerveró prestava depoimento
ao juiz Sérgio Moro, responsável pela Lava-Jato no Paraná. Cerveró
acrescentou mais suspeitas contra o presidente do Senado no escândalo.
Delator da Lava-Jato, o ex-diretor disse que Jorge Luz, um lobista
ligado ao PMDB acusado de ser um operador de propina que agia na
Petrobras, repassou dinheiro desviado da estatal para Renan. “(O Jorge
Luz)Eu conheci o Jorge Luz, (...), também faz parte de uma propina que
eu recebi, que faz parte da minha colaboração na Argentina. E foi o
operador que pagou os US$ 6 milhões da comissão. Da propina da sonda
Petrobras 10.000, foi o Jorge Luz encarregado de pagar ao senador Renan
Calheiros...”, disse Cerveró, interrompido logo em seguida pelo juiz
Moro, por não ser o assunto objeto da audiência naquela tarde e por
envolver autoridade com direito a foro especial. Nesse caso, também as
atuações de Renan e Cunha se confundem. Essa mesma sonda também teria
rendido propina ao presidente da Câmara, situação que já está sendo
tratada pelo Supremo. Segundo Cerveró, Renan e Cunha teriam participado
de operações que renderam cerca de US$ 35 milhões em propinas.
Cunha pode estar agora fora da cena
principal, mas é importante que não seja esquecido. Ou melhor, que seja
afastado definitivamente do palco político. A procuradoria já apresentou
duas denúncias contra ele, uma delas já julgada e transformada em ação
penal. Renan deveria segui-lo para fora do palco. Em mais de uma
oportunidade Cunha acusou Janot de ser seletivo nas investigações da
Lava-Jato. Sem citar nomes, o deputado chamou a atenção de não haver até
o momento denúncias contra políticos próximos do Planalto. Entre
outros, o presidente da Câmara inclui nesse pacote o colega de partido
que preside o Senado. Cunha e Renan começaram a ser investigados em
março do ano passado, na leva de inquéritos abertos contra dezenas de
políticos. Um exemplo citado sobre o ritmo das investigações contra
Renan no Supremo foi o caso dos bois de Alagoas. Em janeiro de 2013, às
vésperas de ser escolhido para presidir o Senado, Renan foi acusado de
apresentar à Casa notas frias e documentos falsificados para justificar a
origem do dinheiro em espécie que um lobista ligado à Mendes Júnior,
empresa investigada no Petrolão, entregava à mãe de sua filha, a título
de pensão. O escândalo ocorreu em 2007. A procuradoria imputou ao
presidente do Senado crimes de peculato (desvio de dinheiro público),
falsidade ideológica e uso de documento falso. Decorridos três anos, o
Supremo ainda decidirá se processa Calheiros pela acusação de ter tido
despesas pessoais bancadas por uma empreiteira – e parte desta denúncia
acabou prescrevendo.
No caso da Lava-Jato, Renan é investigado
no inquérito conhecido como “quadrilhão”, aberto para apurar a
participação de políticos em desvios na Petrobras. São dezenas de
deputados e senadores relacionadas nessa apuração. Existem mais oito
frentes de apuração. Há suspeitas contra ele de receber propina
relacionada a um acordo entre a Petrobras e o Sindicato dos Práticos,
profissionais que atuam na orientação naval. Os pagamentos estariam
relacionados a reajuste na tabela da categoria. O presidente do Senado
foi também relacionado a suspeitas de desvios envolvendo a Transpetro,
braço de logística da Petrobras. Apadrinhado político de Renan, Sérgio
Machado comandou a subsidiária de 2003 a 2015. Machado é investigado por
suspeitas de receber propina.
Delator da Lava-Jato, Carlos Alexandre de
Souza Rocha, conhecido como Ceará e entregador de valores de Alberto
Youssef, afirmou que ouviu o doleiro dizer que daria R$ 2 milhões a
Renan para evitar a instalação de uma CPI no Congresso para investigar
corrupção na Petrobras. Segundo Ceará, Youssef pediu a ele para entregar
R$ 1 milhão a Renan em Maceió, o que teria sido feito. Renan foi
acusado ainda pelo ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo
Roberto Costa de tráfico de influência em prol da empresa
Serveng-Civilsan, interessada em prestar serviços à estatal. As
tratativas foram intermediadas pelo deputado Aníbal Gomes (PMDB-CE),
aliado do presidente do Senado. Questionado sobre essas acusações, Renan
negou seu envolvimento em irregularidades. Para o Planalto, as
negativas são convincentes.
Foto: Ueslei Marcelino/REUTERS, Alan Marques/Folhapress