Prestes a completar o primeiro ano de governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
já está deixando sua marca nas contas públicas – e o quadro que se
revela até agora confirma, em boa medida, as previsões negativas feitas
por muitos analistas desde antes da posse, em janeiro.
Com
sua perspicácia e capacidade de articulação política, Lula tem
conseguido contornar mecanismos de controle de gastos, sem deixar
brechas para contestações legais, e está gastando muito além do que
poderia, tingindo o Orçamento de vermelho e encorpando a dívida pública.
Neste
ano, se não houver nova revisão nos dados oficiais, o governo deverá
fechar suas contas com um saldo negativo de R$ 203,4 bilhões, segundo o Banco Central (BC), o equivalente a 1,9% do PIB (Produto Interno Bruto), sem contar os juros da dívida pública.
Exceto
pelo resultado de 2020, no auge da pandemia, o déficit de 2023
interrompe uma série de cinco anos de melhora na situação fiscal do
País, iniciada em 2017, primeiro “ano cheio” do governo Temer, após o
impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Somando
a esse resultado o valor gasto com o pagamento dos juros da dívida, o
buraco no ano deverá ficar em torno de R$ 800 bilhões ou 7,5% do PIB, de
acordo com estimativas feitas a partir dos números mais recentes do BC.
Com isso, a dívida bruta, que havia caído para 72,9% do PIB em 2022,
depois de atingir o pico histórico em 2020, está empinando de novo.
Até o
fim de outubro, conforme os dados do BC, já estava em 74,7% do PIB. E,
de acordo com projeções de analistas de mercado, deverá continuar a
crescer, chegando a 78,5% do PIB em 2025 e superando os 80% do PIB em
2026, no fim do governo Lula. “Para
o PT, o importante é o governo gastar para estimular a economia e
fazê-la crescer”, diz Marcos Mendes, doutor em economia e pesquisador
associado do Insper, uma escola de negócios, direito e engenharia de São
Paulo. “Para eles, desajuste fiscal não leva ao aumento da inflação, ao
aumento dos juros, ao aumento dos riscos, das incertezas. Déficit
fiscal só tem o lado bom, porque as pessoas compram mais, as empresas
investem mais, a economia roda. É assim que funciona a cabeça deles.”
Embora
o rombo de 2023 esteja dentro da “licença para gastar” que Lula obteve
do Congresso antes mesmo de tomar posse, ele supera de longe o déficit
de 0,5% do PIB, depois reajustado para 1% do PIB, prometido pelo
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao longo do ano.
Como
o presidente brecou qualquer iniciativa de contenção de gastos, as
despesas acabaram sendo maiores do que as previstas por Haddad, e as
receitas, menores, apesar de seu empenho em implementar sua pauta arrecadatória, para tentar reduzir o estrago causado pela gastança nas contas públicas. “As
medidas de aumento de arrecadação não surtiram o efeito que o ministro
desejava”, afirma Rafaela Vitoria, economista-chefe do Banco Inter. “As
despesas estão crescendo bem mais do que as receitas e o que preocupa é
que não existe debate sobre a necessidade de controlar o aumento dos
gastos.”
Haddad
até corre atrás de receitas adicionais, já que não tem autorização do
chefe para cortar despesas, com o objetivo de aliviar da melhor forma
possível o déficit fiscal. Ainda que por vias tortas, por meio de
medidas de aumento de impostos, algumas das quais dependendo de
aprovação do Congresso, Haddad está tentando colocar um pouco de ordem
na casa.
O
problema é que, com a carga tributária na faixa de 35% do PIB, bem acima
da média dos países emergentes, o espaço para o aumento da arrecadação e
a realização do ajuste pelo lado da receita é relativamente pequeno.
“Se o governo quisesse, haveria espaço para controlar despesas, mas
existe pouca vontade para fazer isso”, diz Rafaela.
Depois
do impeachment, com a adoção do teto dos gastos, que limitava as
despesas de um ano às do ano anterior corrigidas pela inflação, o
panorama fiscal se manteve mais ou menos sob controle.
As despesas
totais do governo nesse período caíram de forma significativa, de 19,9%
do PIB em 2016 para 18,2% em 2022, com o congelamento dos salários do
funcionalismo, a reposição parcial dos funcionários aposentados e a
suspensão de concursos públicos.
A
reforma da Previdência,
cujo rombo crescia em progressão geométrica, também deu uma forte
contribuição para melhorar a situação.
Além disso, a inflação e os
juros, que na época de Dilma estavam em alta, vêm caindo de forma
progressiva nos últimos meses. “Nós
sabemos que a situação fiscal não vai garantir a sustentabilidade da
dívida pública, mas também não vai deteriorá-la muito. Agora, em algum
momento, nós vamos precisar fazer um ajuste equivalente a 2% ou 2,5% do
PIB para estabilizar o crescimento da dívida”, afirma o economista Luiz
Fernando Figueiredo, presidente do conselho de administração da Jive
Investiments e ex-diretor de Política Monetária do Banco Central. “Uma
coisa que ajuda o Brasil é que o mundo também não está uma beleza do
ponto de vista fiscal. Se houvesse um concurso internacional de bruxas, o
Brasil com certeza não seria a bruxa mais feia da disputa”, diz.
Mesmo assim, o atual quadro fiscal do País recomenda certa moderação nos gastos. Em tese, o novo arcabouço
proposto pela Fazenda, aprovado pelo Congresso e sancionado por Lula,
deveria dar o norte na área fiscal a partir de 2024, em substituição ao
teto de gastos, mantendo as contas públicas sob relativo controle. Mas,
diante do rumo que as coisas estão tomando nas últimas semanas nesse
campo, muitos analistas têm dúvidas de que o arcabouço de Haddad, que
estabelece metas anuais de resultado primário (saldo entre receitas e
despesas, sem contar os juros da dívida) e prevê contingenciamento
(bloqueio) de gastos se o cumprimento das metas estiver em risco,
conseguirá “parar em pé”.
Ainda
que Lula tenha dado seu aval para o arcabouço, ele tem demonstrado
desconforto com as metas previstas no dispositivo. Recentemente, depois
de muita controvérsia, Haddad conseguiu convencer o presidente a deixar
para trás, ao menos por enquanto, a ideia de rever a meta de déficit
zero no ano que vem.
O
presidente, no entanto, já disse que não vai cortar investimentos em
infraestrutura e despesas nas áreas de educação e saúde, entre outras,
nem realizar um eventual contingenciamento de verbas para cumprir a meta
em 2024, o que reforça os temores existentes na praça em relação à
sobrevivência do arcabouço.
(...)Foi o que aconteceu, por exemplo, com os investimentos de até R$ 5 bilhões das estatais no âmbito do novo PAC
(Programa de Aceleração do Crescimento), as despesas da bolsa para
alunos de baixa renda do ensino médio, calculadas em R$ 20 bilhões, e os
gastos com o seguro rural. Tudo isso foi excluído da meta.
O
expediente tem levado vários economistas a dizer que a chamada
“contabilidade criativa”, que prosperou no governo Dilma para mascarar a
deterioração fiscal, está de volta à cena.
Não por acaso, a média das
previsões dos bancos, divulgada pelo BC no Relatório Focus mais recente,
aponta para um rombo fiscal equivalente a 1% do PIB em 2024, bem acima
da meta oficial. “Nós estamos de olho, não estamos deixando de ver o que
está acontecendo”, diz Figueiredo.
O
deputado federal Danilo Forte (União-CE), relator do projeto da Lei de
Diretrizes Orçamentárias (LDO), até manteve a meta de déficit zero, a
pedido do governo. Mas estabeleceu um limite máximo de R$ 22,3 bilhões
para contingenciamento de despesas, o que inviabilizaria o cumprimento da meta, segundo técnicos da Câmara,
já que o governo terá de fazer um bloqueio de pelo menos R$ 56 bilhões
para ficar dentro do limite de gastos previsto no arcabouço.
Cheque especial ilimitado
Algumas lideranças do Congresso estão dizendo que o texto final da lei orçamentária libera o governo de fazer qualquer contingenciamento de despesas para cumprir a meta. Na prática, isso significaria, se confirmado, que o Legislativo estaria concedendo a Lula um cheque especial ilimitado, para ele gastar como quiser, transformando o País numa espécie de “terra sem lei” no campo fiscal. A questão, de acordo com parlamentares que detectaram o problema, deverá ser alvo de questionamentos antes da votação da matéria pelo plenário e promete render muita controvérsia.Nos
últimos dias,
Lula voltou a fazer profissão de fé no receituário
heterodoxo adotado em seu segundo mandato, levado ao limite por Dilma em
seu governo,
ampliando ainda mais as incertezas dos analistas em
relação ao futuro do arcabouço e da gestão fiscal do País. Centrado
na política do “gasto é vida”, como dizia Dilma, com o alegado objetivo
de turbinar o crescimento econômico, sem preocupação com o efeito
negativo que isso possa ter nos cofres do Tesouro, esse modelo é
encarado por Lula e pelo PT como uma alternativa ao que o partido chama
de “austericídio”, em referência a um suposto impacto sinistro que a
austeridade fiscal geraria na economia, em prejuízo das empresas e dos
cidadãos.
“Se for necessário este país fazer endividamento para crescer, qual o problema?”, afirmou
Lula, em reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social
Sustentável, o Conselhão, realizada na semana passada, em Brasília. “Nós
temos o caminho das pedras e temos de decidir agora se vamos retirar
essas pedras ou não. Ou se a gente vai chegar à conclusão de que, por um
problema da Lei de Responsabilidade Fiscal, de superávit primário, de
inflação, não vai poder fazer (o que acha que tem de ser feito) e vamos
todo mundo desanimar, voltar para nossa vidinha”, acrescentou o
presidente, escancarando sua rejeição por dois princípios essenciais
para a preservação da estabilidade econômica – o equilíbrio nas finanças
públicas e a manutenção do poder de compra da moeda.
Curiosamente,
como se fosse um movimento orquestrado, a fala de Lula se seguiu a
declarações semelhantes de dirigentes e parlamentares do PT sobre o
tema, realçando o benefício que a gastança do governo pode proporcionar
para a legenda nas eleições municipais de 2024. O pleito é considerado
essencial para alavancar a candidatura do presidente à reeleição e para
ele garantir uma base mais amigável no novo Congresso, a ser eleito em
2026, caso seja o vencedor nas urnas. “Se
tiver que fazer déficit, vamos fazer, ou a gente não ganha a eleição em
2024″, afirmou o deputado petista José Guimarães (CE), líder do governo
na Câmara, em encontro eleitoral promovido dias antes pelo partido,
também em Brasília. “Do ponto de vista econômico, o instrumento que
temos hoje para usar é a política fiscal. É o Estado forte, é o Estado
indutor, é o Estado que gasta; porque senão vamos ficar na mão de Banco
Central, na mão desses liberais de mercado”, disse a deputada Gleisi
Hoffmann, presidente do PT, no mesmo evento.
Também
presente ao convescote petista, Haddad até contestou a visão de Gleisi,
argumentando que a existência de déficit fiscal não garante crescimento
econômico, mas foi uma voz quase isolada no encontro. Nem a experiência
fracassada de Dilma no governo, com resultados desastrosos na economia,
parece suficiente para fazer Lula e o PT mudarem de ideia em relação ao
modelo perdulário de gestão encampado pelo presidente e pelo partido. “O
pensamento econômico do PT é esse mesmo. A maioria das pessoas de
esquerda não admite que as políticas adotadas na economia lá atrás foram
a causa da grande recessão de 2015 e 2016″, diz Marcos Mendes. “Eles
acham que tudo estava indo muito bem e que foi a Lava Jato, o processo
de impeachment, alguma coisa no campo político que atrapalhou o projeto
deles. Então, é natural que, ao voltar ao poder, retomem aquelas
políticas que eles acreditam que estavam indo bem.”