Seja como guerrilheiro, exilado, militante dos direitos humanos, ambientalista, deputado, jornalista ou escritor, Fernando Gabeira se dedica à vida política brasileira há praticamente meio século.
Gabeira foi filiado ao PT até 2003, quando se deu um rompimento rumoroso com Lula e seu séquito. Foi também colega de Jair Bolsonaro por 16 anos, na Câmara dos Deputados. Ele, autor do clássico “O que é isso, companheiro?”, que entre tantas revolucionou os costumes com a icônica tanga de crochê rosa, no começo dos 80, e mais recentemente recebeu um ‘abraço hetero’ de Bolsonaro, com o ex-capitão dizendo-se apaixonado, em entrevista na GloboNews, há dois meses.
Gabeira construiu uma trajetória original e de respeito, e em suas palavras talvez estejam algumas chaves para se entender o tempo de hoje. “Eu acho que a sobrevivência da democracia não está ameaçada, mas a qualidade dela, sim. A situação brasileira pode ser um pouco mais aproximada com a situação dos Estados Unidos, onde a regressão autoritária acontece de uma certa maneira contrabalanceada pelas instituições, pela justiça, mídia, parlamento”.
“As circunstâncias eleitorais que levam o Bolsonaro e essa vitória são circunstâncias que não podem ser muito reduzidas à visão de que é só a direita que está chegando ao governo. Existem não somente várias visões de direita, como muita gente que é basicamente contra a corrupção.
Não significa que todo o eleitorado que vota no Bolsonaro pensa como ele. É muito comum você ouvir: “eu voto no Bolsonaro apesar das coisas que ele pensa”. É um raciocínio, um cálculo que as pessoas fizeram julgando muito com a presença do PT do outro lado. E ele, muito sabiamente, explorou isso desde o princípio”.
“Eu não posso tomar o Haddad como candidato. Na verdade, ele é a pessoa determinada por um grupo que se recusa a fazer uma autocrítica de toda a roubalheira que houve no país, e que está propondo à sociedade – de uma forma que considero inadequada –, que ela dê um cheque em branco para voltarem e fazerem a mesma coisa. Se você não faz uma autocrítica sobre aquilo tudo que aconteceu – e há uma montanha de provas –, e se dispõe a ganhar de novo o governo, é porque você quer continuar fazendo o mesmo”.
“Eu acho que vamos ter uma possibilidade – quem sabe num horizonte próximo –, de todas aquelas pessoas que estavam separadas começarem a se unir um pouco em torno de uma possibilidade de uma frente democrática que não seja essa caricatura que o PT propôs. Uma frente democrática com pessoas, sem partidos querendo hegemonia; sem essa perspectiva eleitoral imediata. Uma frente democrática que pudesse temperar o caminho, moderar o caminho. E as próximas eleições fariam seu ajuste”.
“A ditadura é algo fora do horizonte. As Forças Armadas vão manter uma relação de autonomia em relação a Bolsonaro. Eu acho até que potencialmente, como elemento moderador. Existe no pensamento militar uma visão mais moderada do que do Bolsonaro. Ele é a versão mais popular, com uma série de impurezas que nem sempre os militares consideram uma coisa sensata”.
“Collor veio num contexto ainda de uma eleição analógica. O Bolsonaro veio num contexto de uma eleição digital. Ele tem muitos admiradores que o apoiam, e existe também um corpo de militantes na internet que defendem suas posições. Algo que o Collor não tinha. Ele não tinha ninguém. E o Bolsonaro tem, progressivamente, alguns setores intelectuais que começam de alguma maneira a aparecer em sua defesa. Então, ele tem, no meu entender, uma base mais enraizada que a do Collor”.
“Os elementos do programa do PT que se parecem com o projeto venezuelano foram amplamente discutidos. Este programa surgiu de uma análise do impeachment baseada na presunção de que o partido não procurou tomar o poder, mas apenas vencer as eleições. Uma proposta de Assembleia Constituinte, controle social da mídia e conselhos populares acaba parecendo com o que se passa na Venezuela. E finalmente as entrevistas de José Dirceu sobre o tema, falando em controlar o Judiciário e tomar realmente o poder. Tenho a impressão de que, se o PT vencer as eleições com esse programa, a oposição teria que ser um pouco mais enérgica”.
“Quando esse tema cultural, racial e sexual entrou na campanha, de uma certa maneira abriu um pouco a caixa de Pandora na sociedade, porque veio de cima pra baixo. Agora é necessário tapá-la. Mas, vamos fazer o gênio voltar de novo pra garrafa?
O ideal é começar a baixar o tom, porque grande parte da resistência, da animosidade que o Bolsonaro tem com os movimentos minoritários – seja de gays, mulheres, negros – é que ele os vê muito associados à esquerda e ao PT. Ele os vê como uma continuação do PT.
Na verdade esse é um problema brasileiro. Esses movimentos ficaram muito dependentes do poder do governo, às vezes até financeiramente. E se associaram com a esquerda.
Naturalmente, existe uma visão religiosa, missionária, que tende a se transportar para a política e deseja, de uma certa maneira, uniformizar o comportamento. Essa é a visão conservadora mais clássica, inclusive de alguns setores evangélicos.
É importante que não haja nem grandes vitoriosos, nem grandes derrotados. Mas, que se chegue a uma sociedade onde as pessoas compreendam que elas não são donas do único modo bom de viver. Precisam ter uma tolerância”.
“O que torna as questões mais difíceis, em primeiro lugar é que o momento é de crise econômica, de individualismo. A Europa está acossada por imigrantes, e lá surgiu um movimento de defesa dos postos de trabalho, enfim, um movimento anti-imigrante. O mesmo que mobilizou o Trump.
Portanto, podemos dizer que a crise que está acontecendo é resultado de uma situação econômica muito difícil, na qual as pessoas querem se proteger, mais do que pensar na solidariedade. Parece que nesse momento da História, as forças que dominam ou caminham para o poder, são forças que visam mais a proteção dos seus lugares”.
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Morris Kachani, O Estado de S. Paulo - Inconsciente Coletivo