Digamos que haja uma forma intelectualmente honesta de defender o aborto — e trabalho com essa hipótese apenas porque ela é importante para apontar um desvio de caráter.
Havendo essa possibilidade, esta seria justamente a hora de o grupo que defende a legalização ou a descriminação se calar em vez de falar. Acirrar agora a campanha é de um oportunismo espantoso
De todos os
fanatismos que conheço, o pró-aborto parece ser o mais desmedido. Talvez
resida nisso uma nesga de consciência culpada. Como as pessoas sabem,
ainda que não o admitam, que estão defendendo a morte de inocentes,
procuram reforçar a sua escolha com uma convicção que não admite nem
apartes nem reservas porque, assim, buscam convencer a si mesmas de que
abraçaram uma boa causa.
Chega a ser
chocante, embora não surpreendente, que esses fanáticos vejam os
milhares de casos de microcefalia — o resultado da incúria do Poder
Público, muito especialmente do governo federal — como mais uma janela
de oportunidades para defender, então, a descriminação ou a legalização
do aborto. Temo, sim, o
caráter de um sujeito que olha para um bebê com microcefalia, com toda a
carga de dor e sofrimento que isso implica para a própria vítima e para
a sua família, e veja ali apenas um aborto que deveria ter acontecido.
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Que tipo de
raciocínio ou de falha moral induz alguém a olhar para o humano — notem
que vou preferir tirar Deus desse debate, embora seja legítima, é
evidente, a abordagem religiosa — nessas circunstâncias e decidir,
então, como o Juiz Supremo, que aquela é uma vida que não merece ser
vivida; que aquela é uma vida que não reúne as condições aceitáveis para
estar entre nós; que aquela é uma vida que sobreviveu a um mau juízo?
Digamos que
haja uma forma intelectualmente honesta de defender o aborto — e
trabalho com essa hipótese apenas porque ela é importante para apontar
um desvio de caráter. Havendo essa possibilidade, esta seria justamente a
hora de o grupo que defende a legalização ou a descriminação se calar
em vez de falar. Acirrar agora a campanha é de um oportunismo espantoso.
Essa gente não faz isso em nome das mães, dos direitos da mulher ou, é
evidente, em benefício dos bebês: pensa única e exclusivamente em
aproveitar a oportunidade para ver triunfar uma tese. Usa a tragédia de
milhares para fazer o proselitismo da morte.
Quando o
Supremo, abusando de um direito que não tem, que é o de legislar,
excluiu do crime o aborto de ditos anencéfalos — emendando, na prática, o
Código Penal, sem que tenha sido eleito para isso —, observei aqui que
se tratava apenas de um primeiro passo. Em breve, escrevi, haveria a
reivindicação para que a interrupção não criminosa da gravidez se desse
também para outros casos de malformação do feto.
A incúria, a
incompetência e o descaso transformaram a gravidez numa escolha de
risco no Brasil, epicentro de um problema de saúde pública mundial que
levou a OMS a fazer um de seus raros alertas globais. Não obstante, lá
estão os feticidas fanáticos a sentir o cheiro do sangue fresco. E eles
não têm limites porque é de sua natureza não tê-lo.
Em fevereiro
de 2012, um dupla de acadêmicos italianos chocou o mundo ao escrever no
“Journal of Medical Ethics” um artigo intitulado “After-birth abortion:
why should the baby live?” – literalmente: “Aborto pós-nascimento: por
que o bebê deveria viver?”. À época, escrevi um post a respeito.
No texto, a
dupla — Alberto Giublini e Francesca Minerva — sustenta não haver grande
diferença entre o recém-nascido e o feto. Alguém poderia afirmar: “Mas é
o que também sustentamos, nós, que somos contrários à legalização do
aborto”. Calma! Minerva e Giublini acham que é lícito e moralmente
correto matar tanto fetos como recém-nascidos. Acreditam que a decisão
sobre se a criança deve ou não ser morta cabe aos pais e até, pasmem!,
aos médicos.
Para esses
dois grandes humanistas, NOTEM BEM!, AS MESMAS CIRCUNSTÂNCIAS QUE
JUSTIFICAM O ABORTO JUSTIFICAM O INFANTICÍDIO, cujo nome eles recusam —
daí o “aborto pós-nascimento”. Para eles, “nem os fetos nem os
recém-nascidos podem ser considerados pessoas no sentido de que têm um
direito moral à vida”. Não abrem exceção: o “aborto pós-nascimento”
deveria ser permitido em qualquer caso, citando explicitamente as
crianças com deficiência. Mas não têm preconceito: quando o
“recém-nascido tem potencial para uma vida saudável, mas põe em risco o
bem-estar da família”, deve ser eliminado.
Num dos
momentos mais abjetos do texto, a dupla lembra que uma pesquisa num
grupo de países europeus indicou que só 64% dos casos de síndrome de
Down foram detectados nos exames pré-natais. Informam então que, naquele
universo pesquisado, nasceram 1.700 bebês com Down, sem que os pais
soubessem previamente. O sentido moral do que diz a dupla é claro:
soubessem antes, poderiam ter feito o aborto; com essa nova leitura,
estão a sugerir que essas crianças com Down poderiam, então, ser mortas
logo ao nascer.
O texto gerou tal escândalo que acabou sendo retirado da publicação.
Cito o caso
dessa dupla para evidenciar duas coisas:
1) a defesa do aborto encerra,
entendo eu, uma fronteira moral. Ultrapassada, tudo passa a ser mera
questão de gosto; o máximo que se vai fazer é decidir a partir de que
mês de pode ou não matar o feto.
2) Em segundo lugar, lembro: a Itália
tem uma legislação bastante lassa em relação ao aborto, que deixou de
ser crime em 1978. Os hospitais públicos podem fazer o procedimento
meramente volitivo até o terceiro mês de gravidez. O limite é ampliado
em caso de risco de morte da mãe, malformação do feto etc. Ao médico é
garantida objeção de consciência.
Em tese, um
abortista poderia se dar por satisfeito. Nada disso. Giublini e Minerva
querem mais: já que um bebê recém-nascido, de fato, não é assim tão
diferente de um feto, por que não reivindicar também o direito ao
infanticídio — ou ao aborto pós-nascimento, como a dupla decidiu chamar?
Vocês acham
que esses que agora olham para bebês com microcefalia e pensam logo numa
cureta — em vez de pensar numa política pública de saúde decente e em
um governo eficiente — são diferentes moralmente daqueles dois?
Afinal, o
que esquenta a sua causa é justamente a certeza de que essas crianças
não deveriam ter nascido. E eles a utilizam para defender a morte dos
que também não portam microcefalia.
Não consigo sentir outra coisa: só repúdio intelectual e nojo físico.
Fonte: Revista VEJA - Blog do Reinaldo Azevedo