Teste de maturidade
Talvez nenhuma outra obra traga embutidos tantos mitos, desperte tanto asco e medo quanto ‘Mein Kampf’
Quem mexe com Hitler sabe que vai atrair polêmicas. Mexer com a opus magna
do Führer, “Mein Kampf” (“Minha luta”), é mais tóxico ainda. Por isso, o
mercado editorial enfrenta hoje um momento de decisão tão histórico
quanto coalhado de armadilhas.
Exatamente à meia-noite do próximo 31 de dezembro expira o instrumento jurídico que proibia a reedição da obra. Em outras palavras, na virada do ano “Mein Kampf” passará a domínio público e poderá ser republicado por quem quiser se arriscar. Dias atrás a centenária editora Fayard, da França, tornou-se a primeira empresa literária da Europa a anunciar para 2016 o lançamento do texto maldito. A decisão deixou o país em polvorosa — não apenas a intelectualidade, como os círculos políticos, religiosos e acadêmicos do país.
Embora a Fayard esclareça que o texto original virá acompanhado de extensa pesquisa crítica e de anotações histórico-científicas para corrigir o vitriólico conteúdo, a polêmica adquiriu vida própria. Tampouco adiantou garantir que a editora não terá qualquer lucro financeiro com a empreitada, pois repassará a eventual receita a entidades de pesquisa. O embate entre os que consideram indispensável a reedição de um documento de tamanho peso histórico, e os temerosos da ressurreição de um texto que negou a própria ideia de humanidade, não tem data para terminar.
Talvez nenhuma outra obra traga embutidos tantos mitos, desperte tanto asco e medo, gere tamanha curiosidade e especulação, além de se beneficiar da aura de leitura proibida por 70 anos. Hitler escreveu “Mein Kampf” em dois tempos. A primeira parte data de 1924 e pretendeu ser sua autobiografia estilizada, mesclada às raízes do Partido Nacional-Socialista. Escreveu-a da prisão onde cumpria pena por participação num fracassado putsch em Munique contra o governo da Baviera. Vendeu perto de dez mil exemplares. O segundo tomo, publicado dois anos depois, contém o programa do nacional-socialismo, a formulação da ideologia nazista e o papel alocado à raça ariana.
Traduzido para 18 idiomas e com mais de 12 milhões de cópias impressas entre a ascensão ao poder do autor, em 1933, e sua queda no final da Segunda Guerra, “Mein Kampf” tornou-se leitura quase obrigatória na Alemanha. Tanto quanto os “Pensamentos” do camarada Mao Tsé-tung reunidos no famoso Livrinho Vermelho de 1964.
Se o manifesto alemão foi efetivamente lido com ardor de ponta a ponta, não se sabe, pois, ao contrário dos ensinamentos do líder chinês, breves e de compreensão fácil, o texto de Hitler é atroz. Mas passou a representar a matriz do pensamento nazista. Com o suicídio do Führer em 1945 e a derrocada de seu regime, as tropas americanas de ocupação intervieram na editora Franz Eher, que publicava os textos nazistas em Munique, e repassaram os direitos autorais de “Mein Kampf” às autoridades da Baviera. Desde então, a proibição de reeditar ou distribuir a obra em qualquer formato vinha sendo imposta com zelo de cão farejador pelos sucessivos governos bávaros.
É este instrumento jurídico que expira agora no final do ano, decorrido o prazo de 70 anos após a morte do autor. É claro que nesse longo hiato sempre circularam cópias disponíveis. Ainda esta semana bastava entrar no site Estante Virtual para encontrar 24 edições em português, além de outras em espanhol, italiano e até mesmo uma em alemão gótico, de 1933, para quem estiver disposto a desembolsar R$ 4.700. Mas, de um modo geral, “Mein Kampf” virara fetiche, enquanto os demais textos de Hitler — discurso, testamento, conversas com diplomatas, instruções militares — sempre estiveram liberados. Era uma lacuna abissal para pesquisadores.
Esta lacuna está prestes a ser preenchida pelo Instituto de História Contemporânea de Munique (IZG, da sigla em alemão). Há seis anos, um núcleo de sete pesquisadores, auxiliados por especialistas em disciplinas tão variadas como Germanística e Genética Humana, Judaísmo e História da Arte, Pedagogia e Economia, trabalha numa edição comentada de “Mein Kampf”. Às quase 800 páginas do texto original foram somados 3.500 comentários científicos e anotações que visam desconstruir o discurso nazista e contextualizá-lo academicamente.
Este colosso crítico em dois volumes e perto de duas mil páginas já está no forno e será publicado com o selo do IZG tão logo a obra caia em domínio público. No futuro também estará disponível on-line, grátis, portanto livre da acusação de possível lucro imputada à versão anunciada pela Fayard. Independentemente do texto de Hitler em breve ter seus direitos autorais liberados, a lei francesa pode continuar a vetar sua publicação a menos que o texto original venha acompanhado de material explicativo sobre os crimes cometidos em seu nome. Isso porque a incitação ao ódio racial é uma das raras restrições da liberdade de expressão na França e a obra pode ser usada como instrumento de propaganda racista.
“Publicar ‘Mein Kampf’ logo agora, nesse contexto político sufocante em que o antissemitismo está avivado, junto com sua nauseabunda contrapartida, o ódio ao muçulmano?”, indaga o secretário-geral do Partido de Esquerda, Alexis Corbière. “Sua publicação por uma grande casa editora romperá a fronteira de todas as proibições morais”, acredita ele. As reticências do professor da Sorbonne Johann Chapoutot, especialista em História do Nazismo, são de outra ordem. “Não vejo o motivo para se focar tanto num livro que não tem a importância que lhe é atribuída, nem seu autor tem a centralidade absoluta imaginada, mas uma boa edição crítica poderá mostrar isso”, declarou ao jornal “Libération”.
No fundo um mesmo receio permeia o debate: e se “Mein Kampf” vier a se tornar o grande sucesso de livraria de 2016? É um risco a correr e não representará necessariamente o naufrágio da civilização ocidental. Ela já esteve a pique várias vezes, por sinal. Tanto a França como o resto da Europa assolada por levas de refugiados precisam passar por este teste de amadurecimento. A melhor maneira de compreender e não repetir a história é estudá-la e conhecê-la.
Por: Dorrit Harazim, jornalista - O Globo
Exatamente à meia-noite do próximo 31 de dezembro expira o instrumento jurídico que proibia a reedição da obra. Em outras palavras, na virada do ano “Mein Kampf” passará a domínio público e poderá ser republicado por quem quiser se arriscar. Dias atrás a centenária editora Fayard, da França, tornou-se a primeira empresa literária da Europa a anunciar para 2016 o lançamento do texto maldito. A decisão deixou o país em polvorosa — não apenas a intelectualidade, como os círculos políticos, religiosos e acadêmicos do país.
Embora a Fayard esclareça que o texto original virá acompanhado de extensa pesquisa crítica e de anotações histórico-científicas para corrigir o vitriólico conteúdo, a polêmica adquiriu vida própria. Tampouco adiantou garantir que a editora não terá qualquer lucro financeiro com a empreitada, pois repassará a eventual receita a entidades de pesquisa. O embate entre os que consideram indispensável a reedição de um documento de tamanho peso histórico, e os temerosos da ressurreição de um texto que negou a própria ideia de humanidade, não tem data para terminar.
Talvez nenhuma outra obra traga embutidos tantos mitos, desperte tanto asco e medo, gere tamanha curiosidade e especulação, além de se beneficiar da aura de leitura proibida por 70 anos. Hitler escreveu “Mein Kampf” em dois tempos. A primeira parte data de 1924 e pretendeu ser sua autobiografia estilizada, mesclada às raízes do Partido Nacional-Socialista. Escreveu-a da prisão onde cumpria pena por participação num fracassado putsch em Munique contra o governo da Baviera. Vendeu perto de dez mil exemplares. O segundo tomo, publicado dois anos depois, contém o programa do nacional-socialismo, a formulação da ideologia nazista e o papel alocado à raça ariana.
Traduzido para 18 idiomas e com mais de 12 milhões de cópias impressas entre a ascensão ao poder do autor, em 1933, e sua queda no final da Segunda Guerra, “Mein Kampf” tornou-se leitura quase obrigatória na Alemanha. Tanto quanto os “Pensamentos” do camarada Mao Tsé-tung reunidos no famoso Livrinho Vermelho de 1964.
Se o manifesto alemão foi efetivamente lido com ardor de ponta a ponta, não se sabe, pois, ao contrário dos ensinamentos do líder chinês, breves e de compreensão fácil, o texto de Hitler é atroz. Mas passou a representar a matriz do pensamento nazista. Com o suicídio do Führer em 1945 e a derrocada de seu regime, as tropas americanas de ocupação intervieram na editora Franz Eher, que publicava os textos nazistas em Munique, e repassaram os direitos autorais de “Mein Kampf” às autoridades da Baviera. Desde então, a proibição de reeditar ou distribuir a obra em qualquer formato vinha sendo imposta com zelo de cão farejador pelos sucessivos governos bávaros.
É este instrumento jurídico que expira agora no final do ano, decorrido o prazo de 70 anos após a morte do autor. É claro que nesse longo hiato sempre circularam cópias disponíveis. Ainda esta semana bastava entrar no site Estante Virtual para encontrar 24 edições em português, além de outras em espanhol, italiano e até mesmo uma em alemão gótico, de 1933, para quem estiver disposto a desembolsar R$ 4.700. Mas, de um modo geral, “Mein Kampf” virara fetiche, enquanto os demais textos de Hitler — discurso, testamento, conversas com diplomatas, instruções militares — sempre estiveram liberados. Era uma lacuna abissal para pesquisadores.
Esta lacuna está prestes a ser preenchida pelo Instituto de História Contemporânea de Munique (IZG, da sigla em alemão). Há seis anos, um núcleo de sete pesquisadores, auxiliados por especialistas em disciplinas tão variadas como Germanística e Genética Humana, Judaísmo e História da Arte, Pedagogia e Economia, trabalha numa edição comentada de “Mein Kampf”. Às quase 800 páginas do texto original foram somados 3.500 comentários científicos e anotações que visam desconstruir o discurso nazista e contextualizá-lo academicamente.
Este colosso crítico em dois volumes e perto de duas mil páginas já está no forno e será publicado com o selo do IZG tão logo a obra caia em domínio público. No futuro também estará disponível on-line, grátis, portanto livre da acusação de possível lucro imputada à versão anunciada pela Fayard. Independentemente do texto de Hitler em breve ter seus direitos autorais liberados, a lei francesa pode continuar a vetar sua publicação a menos que o texto original venha acompanhado de material explicativo sobre os crimes cometidos em seu nome. Isso porque a incitação ao ódio racial é uma das raras restrições da liberdade de expressão na França e a obra pode ser usada como instrumento de propaganda racista.
“Publicar ‘Mein Kampf’ logo agora, nesse contexto político sufocante em que o antissemitismo está avivado, junto com sua nauseabunda contrapartida, o ódio ao muçulmano?”, indaga o secretário-geral do Partido de Esquerda, Alexis Corbière. “Sua publicação por uma grande casa editora romperá a fronteira de todas as proibições morais”, acredita ele. As reticências do professor da Sorbonne Johann Chapoutot, especialista em História do Nazismo, são de outra ordem. “Não vejo o motivo para se focar tanto num livro que não tem a importância que lhe é atribuída, nem seu autor tem a centralidade absoluta imaginada, mas uma boa edição crítica poderá mostrar isso”, declarou ao jornal “Libération”.
No fundo um mesmo receio permeia o debate: e se “Mein Kampf” vier a se tornar o grande sucesso de livraria de 2016? É um risco a correr e não representará necessariamente o naufrágio da civilização ocidental. Ela já esteve a pique várias vezes, por sinal. Tanto a França como o resto da Europa assolada por levas de refugiados precisam passar por este teste de amadurecimento. A melhor maneira de compreender e não repetir a história é estudá-la e conhecê-la.
Por: Dorrit Harazim, jornalista - O Globo