Folha de S. Paulo
Cooptação em massa de oficiais da reserva ameaça fragmentar dique institucional
"Vai
ter golpe?", indagou-me um amigo dileto pouco tempo atrás. Retruquei
com uma negativa convicta: a geração atual de comandantes das Forças
Armadas aprenderam com a história e não repetirão, como farsa, a
tragédia de 1964. "Vai ter putsch?", meu amigo pergunta agora.
Respondi-lhe com mais um "não", acompanhado por argumentos razoáveis.
Contudo, pensando melhor, acho que perdi uma parte da paisagem. Putsch
é um intento golpista fadado, de antemão, ao fracasso. No célebre
Putsch da Cervejaria de Munique (1923), Hitler e seus seguidores não
obtiveram o esperado apoio de setores do Exército ou da polícia da
Baviera.
[sugiro ao ilustre articulista:
- ser mais elegante no trato com seus inimigos políticos - os bolsonaristas não são escória;
- ser mais cuidadoso, ou mesmo respeitoso, ao considerar caminho para a corrupção estatal participar do atual governo.
O ex-deputado Márcio Moreira Alves é um exemplo de que o tratamento não cordial pode ter consequência. A citação ao parlamentar, já falecido é feita como exemplo e com o devido respeito.]
Mas aquela escória nazista, forjada no caldeirão
fervente da derrota alemã na guerra europeia, mostrou-se disposta a
combater e morrer de verdade. Já a escória de fanáticos bolsonaristas é
feita do material lânguido fabricado pelas redes sociais. Deles, nada
surgirá, exceto ameaças anônimas digitadas a distância ou fogos de
artifício numa esplanada deserta. A fuga de Weintraub rumo a uma
bem remunerada diretoria inútil do Banco Mundial comprova, para quem
ainda nutria dúvidas, que esses cachorros barulhentos não mordem. A
parte que perdi da paisagem é outra. Até que ponto o bolsonarismo
conseguirá limar a disciplina militar?
O fenômeno mais saliente é
a ação ininterrupta das redes bolsonaristas nos quartéis. A cooptação
de militares e policiais para a militância antidemocrática ganhou alento
com as publicações de manifestos golpistas de altos oficiais da reserva
e a difusão de mensagens dúbias oriundas dos generais do Planalto. Contudo,
paralelamente, desenrola-se um novelo menos visível, mas talvez ainda
mais relevante: a militarização extensiva dos altos e médios escalões da
administração pública federal. O Ministério da Saúde, ocupado de alto a
baixo por militares, ilustra uma tendência generalizada. Nesse passo,
generais e coronéis passam a desempenhar funções de intermediários de
contratos e compras governamentais. Abrem-se, assim, de par em par, as
portas para a incorporação dos militares no ramificado negócio da
corrupção estatal.
Dinheiro, muitas vezes, pesa mais que
ideologia. No Egito, Hosni Mubarak consolidou seu poder pelo loteamento
do aparelho administrativo e das empresas estatais entre os comandantes
militares. Quando o ditador tornou-se um fardo político pesado demais, o
sistema ditatorial reciclou-se, substituindo-o por Abdel Fatah al-Sisi.
Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika operou de modo similar, entregando ao
Exército as chaves da economia para estabilizar, por duas décadas, seu
regime autoritário.
A ferramenta funciona à direita e à esquerda.
Maduro não caiu porque, seguindo a receita cubana, transferiu às Forças
Armadas os setores mais lucrativos de uma economia em ruínas: comércio
exterior e distribuição de alimentos. Na Bolívia, prova inversa, Evo
Morales nunca incluiu o Exército no jogo do capitalismo de estado, o que
acabou decidindo seu destino. O Brasil não é o Egito, Argélia,
Cuba ou Venezuela. Por aqui, não se verifica uma transferência das
chaves da economia às Forças Armadas. A instituição militar segue
separada do governo, circunscrita às suas missões profissionais
definidas pela Constituição. Mas a cooptação em massa de oficiais da
reserva para a administração pública, elemento do projeto de politização
dos homens em armas conduzida pelo bolsonarismo, ameaça fragmentar o
dique institucional.
Lá atrás, os generais estrelados cederam à
ilusão de que seria possível conciliar o apoio político dos militares ao
governo Bolsonaro com a preservação da neutralidade institucional das
Forças Armadas. Hoje, quando se fecha o cerco judicial à subversão
bolsonarista, a tensão entre esses objetivos incompatíveis atinge
temperatura insuportável. Não vai ter golpe. Reúnem-se, porém, as
condições para um putsch.
Demétrio Magnoli, jornalista - Folha de S. Paulo