Salário abaixo de R$ 1.000, desemprego em
59%, atraso no pagamento e insistência no sonho – assim vive o atleta que
ninguém vê
No Ninho do Corvo, ou Estádio
Antônio Soares de Oliveira, a 12 quilômetros do aeroporto internacional de Cumbica, em Guarulhos, São
Paulo, o barulho do avião que decola abafa os berros que saem do vestiário do
time visitante, a Matonense. Ouvem-se os berros por trás da porta de ferro, mas
não se distinguem os palavrões de qualquer instrução que o técnico Pinho esteja
passando aos atletas. A 20 metros dali, no campo, dois garotinhos de seus 7
anos se revezam em chutes a gol, enquanto o jogo não começa. A cada bola que
acerta, um, com a camisa da italiana Juventus e chuteira da Nike, comemora com
um sonoro “goool!” e rola na grama. São filhos de jogadores do Flamengo,
o time da casa. Não o carioca, da
primeira divisão nacional. E sim o paulista, da terceira divisão estadual,
em que os jogadores ganham menos que garçons e assistentes de obra.
A desigualdade entre os Flamengos
é abissal. O carioca arrecadou
R$ 334 milhões em 2014. O de Guarulhos, no mesmo ano, conseguiu 0,02% disso, R$ 59 mil. A
diferença tem relação direta com os elencos. Eis a escalação do Flamengo que
encara a Matonense neste domingo: Wagner no gol; Arthur, Carlão, Igor Prado e
Biro Biro na defesa; Wellington Carioca, André Bilinha e Fernando Júnior na
meia; Milton Junior, Ingro e Daniel Bueno no ataque. Não conhece ninguém? Não se culpe.
Os jogos são transmitidos por
rádio só para algumas cidades do interior do Estado. Nada de TV aberta nacional. Se
o peruano Paolo Guerrero, sozinho, leva milhões de reais por ano do Flamengo do
Rio de Janeiro, a folha salarial total do Flamengo de Guarulhos, em R$ 46 mil, permite pagar salários de
cerca de R$ 700 mensais para cada
jogador por quatro meses, tanto quanto recebem quatro em cada cinco jogadores
de futebol profissionais no Brasil. Esses atletas ganham menos que
ascensorista. O craque em Guarulhos é o veterano Daniel
Bueno, de 32 anos, 1,84 metro de altura, 80 quilos. Artilheiro do
time em 2016, com três gols em seis jogos até ali. Dentro do vestiário, antes
do jogo, ele veste a camisa rubro-negra e amarra os cadarços da Adidas tão suja
que mal se percebem as três listras.
Caminham
para lá Rafael Piauí e Bartô. Ambos usam bonés com aba reta,
camisetas coloridas, shorts e chinelos. Nenhum dos dois jogará. O primeiro,
atacante, rompeu ligamentos do joelho em um jogo-treino em dezembro. Está fora
da competição. Teve sorte de manter o
emprego até o fim do estadual. O segundo foi eleito o melhor
lateral-direito da terceira divisão pelo Tupã em 2015 e jogou como titular
cinco dos seis jogos do Flamengo-SP em 2016, mas seu desempenho caiu e ele nem
sequer foi relacionado pelo técnico Edson Vieira para esse jogo. Também se
estranhou com a diretoria, depois que contou ter uma proposta para jogar no
Nacional, da capital, e se mudar para a segunda divisão de Portugal no segundo
semestre. Quis ir, mas desistiu. Diz ter preferido manter a palavra que deu ao
técnico ao chegar ao clube. Piauí e Bartô entram no vestiário e na roda de
flamenguistas já uniformizados. É hora de concentrar.
“Eu não gosto de sentir o cheiro de derrota!
Não deixa cair! Vambora!”, discursa o técnico, no meio da roda. “Vamos dar o sangue! Sem bobear! Sem sair atrás!”, grita Carlão,
zagueirão e capitão do time. “Pai nosso
que estais no céu! Santificado seja o vosso nome!”.
Os 20 atletas, técnico, assistente e preparador físico, todos agarrados
e carrancudos, berram a oração. Batem palmas. Saem, um por um, e marcham
para o túnel que leva ao campo. As pisadas mais fortes que o necessário
reforçam o humor beligerante. Passam por uma barata morta, uma parte escura do
corredor com lâmpada queimada e sobem para o gramado. De longe, todo verdinho.
Basta se aproximar para notar no mínimo três espécies diferentes de grama e
perceber os buracos. Aguardam o jogo 638
torcedores, acomodados com espaço, que gritam e tomam picolés de R$ 2.
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