O partido não é o lugar de pensamento e crítica,
mas de servidão aos seus dirigentes e ao seu líder maior, Lula
A carta
de Antonio Palocci ao PT, apresentando a sua desfiliação, e a reação dos
líderes partidários, acusando-o de “mentiroso” e “traidor”, expõem um certo
modo de fazer política que se aparenta ao crime, subvertendo completamente o
significado mesmo da moralidade. O avesso da tão anunciada política petista de
renovação nacional nada mais foi do que uma demonstração de uma política
criminosa. As palavras vieram a perder o seu significado.
Quem é o
traidor? Aquele que fala a verdade e confessa os seus crimes? Aquele que rompe
com a lei do silêncio, não mais seguindo o valor mafioso da omertá? Mais
vale a coerência com os princípios partidários ou o seu total abandono? É a traição
dos princípios? Um dos
maiores ganhos apresentados pelo PT ao país foi o de ter sido criado como um
partido munido de um corpo doutrinário, que obedecia a alguns princípios
básicos como a luta pela igualdade, a redistribuição de renda e a ética na
política. Mostrava também uma feição bolchevique em sua organização partidária
que fazia par com os ares mais abertos subsequentes à queda do Muro de Berlim.
Tal aspecto foi, porém, relegado pela opinião pública, ávida por mudança. O
espírito leninista foi mitigado pela recuperação, embora tímida, de traços
social-democratas.
Ocorre
que o partido terminou por adotar uma outra via, que não era a propriamente
revolucionária nem a social-democrata, com aspectos de ambas, porém, estando
presentes, como a relativização do direito de propriedade via invasões dos
ditos movimentos sociais e políticas distributivistas, que ampliaram as feitas
no governo social-democrata anterior. O caminho finalmente adotado foi o de uma
cooptação do Estado à maneira de uma organização criminosa, voltada tanto para
o enriquecimento pessoal quanto para o fortalecimento das finanças partidárias.
Os princípios foram efetivamente traídos!
Como
podem, portanto, os líderes petistas acusarem Antonio Palocci de traição? Qual
é a perspectiva? Por ter desnudado uma outra traição, a da máquina partidária
em relação aos seus próprios princípios? Ele está sendo acusado de não ser fiel
ao partido! Mas o partido foi fiel a si mesmo? A
moralidade, outrora princípio partidário, tornou-se um mero instrumento de
manipulação, perdendo totalmente a sua universalidade. Foi utilizada,
retoricamente, para o uso dos incautos. Um ex-presidente, já réu e denunciado
em vários processos, com provas abundantes contra ele, utiliza o artifício
demagógico de se apresentar como o homem mais honesto do país. O que fazem os
seus companheiros, na verdade seus cúmplices? Não coram e o apoiam! Um caro
valor partidário foi completamente abandonado em nome da preservação da
organização partidária, que surge enquanto valor maior.
O PT
revela, neste episódio, toda uma estrutura partidária de cunho leninista, para
não dizer stalinista. O coletivo afirma-se acima de todos os seus membros,
cabendo a esses a mera obediência. Não importa o corpo doutrinário, os
princípios e os valores, mas o ato de curvar-se às diretrizes partidárias. Se o
partido praticou crimes, a ordem é: esqueçam e o defendam acima de tudo. Se o
partido desviou-se de seus princípios: esqueçam e lhe obedeçam. O partido não é
o lugar de pensamento e crítica, mas de servidão aos seus dirigentes e ao seu
líder maior, Lula.
Note-se
que foi aberto um procedimento de natureza “ética” em relação ao ex-ministro.
Em vez de a ética significar coerência em relação a valores de natureza
universal, em vez de significar a retidão no comportamento pessoal, ela ganha
uma toda outra conotação, a da submissão a um comitê partidário, cuja função
seria apenas a de determinar a sua punição por não ter seguido a lei do
silêncio. A pena seria provavelmente a expulsão. No tempo de Stálin, com o
partido gozando de poder absoluto, ela seria a tortura, a humilhação e a morte,
como foi o caso, entre outros, dos célebres Processos de Moscou, que eliminaram
a velha guarda bolchevique.
Lula foi
elevado pelo partido às alturas do Púlpito, exigindo de todos a crença absoluta
nas suas palavras, como se nelas estivesse presente a fala de um líder
religioso. Diz qualquer mentira e recebe em troca não a dúvida e a crítica, mas
a devoção. Os militantes tornaram-se devotos de um líder partidário, que se
apresenta como figura imaculada. Já antes, no exercício do poder, excedia-se em
suas bravatas, que eram, porém, cordialmente aceitas como coisa de um retirante
bem-sucedido.
Acontece
que o sucesso transformou aquela simpática figura do líder sindical em um
governante que considerou o poder enquanto coisa sua, a ser usada a seu
bel-prazer, como se limites não existissem. A corrupção tornou-se meio de
governo, inclusive sob a forma do enriquecimento pessoal e de seus familiares e
amigos. Os históricos líderes comunistas, nesta esfera da corrupção, não
ousaram tanto. Agora, o
véu desta forma esquerdista de fazer política foi levantado. O que aparece é a
corrupção enquanto forma de governo, o desmonte do Estado, a desestruturação da
economia e o fortalecimento da desigualdade social. A retórica, contudo, foi a
do engano e da mentira, como se o país estivesse se transformando em um país de
Primeiro Mundo, socialmente justo. Um líder carismático, como Lula, conseguiu
transmitir a sua mensagem, ao arrepio de qualquer relação com a verdade. A
prática era a política criminal, o seu véu a política distributivista, a que
lhe permitiu a reeleição e a indicação de sua sucessora, que consumou o
desastre da experiência petista.
A questão
que se coloca aos petistas e aos seus simpatizantes é a da opção entre a
crítica, com a sua subsequente renovação, e a crença na conduta religiosa de
seu líder máximo. Devem escolher entre seguir uma seita e orientar-se segundo
valores e princípios livremente discutidos e aplicados. Desta opção, depende a
consideração de quem é ou não traidor.
Por: Denis
Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul