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quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Uma brasileira nos subúrbios muçulmanos de Paris



"Falar assim é complicado", disse o policial, quando identifiquei como árabe e muçulmano o homem que me agrediu. "Soa racista"
"Há uns dois anos, tive um problema com meu visto e precisei alugar um quarto em uma cité. Para quem não sabe, cités são moradias subvencionadas pelo governo, onde as pessoas pagam de acordo com a renda - ou não pagam nada, em alguns casos. Em geral, mora ali quem tem uma renda mais modesta.

O problema é que muitos desses lugares viraram guetos de imigrantes, principalmente do norte da África e pessoas de religião muçulmana. A cité onde morei não era exclusivamente um gueto de imigrantes, mas havia um razoável número de argelinos, tunisianos e marroquinos. Não havia assaltos, não vi grandes brigas, mas uma tensão permanente cortava o ar.

Não havia muitas mulheres na rua e as que eu encontrava eram, em grande parte, muçulmanas. Usavam o véu e a roupa (não a burca, que cobre tudo menos os olhos). Moravam ali também as africanas, com seus vestidos coloridos. O que acontecia é que eles não se misturavam. As mulheres de véu, na maioria das vezes, andavam rápido, olhando para o chão, geralmente acompanhadas pelos filhos.

Nos cafés, só homem. Não parecia a França, ao menos a França que nós imaginamos. Eu me sentia, sim, um pouco intimidada por isso, principalmente quando passava em frente a um desses lugares onde os homens se reuniam. Claro que no Brasil há as cantadas machistas e tudo o mais, mas não é isso que esperamos ao vir para a França, o país conhecido pela igualdade e pela luta dos direitos das mulheres. Uma vez, um homem pediu uma informação e, pelo sotaque e vestimenta, vi que parecia um muçulmano do norte da África. Quando dei a informação, ele tentou me agarrar. Como estava com uma sombrinha, dei uma batida nele, ele saiu correndo e fui reclamar para um policial. E quando o policial perguntou como o homem era, eu o descrevi e disse: "era um árabe com vestido, esses vestidos de muçulmano". E o policial me respondeu: "falar assim é complicado, soa racista".

Ora, eu tinha sido quase agredida, sou brasileira, ou seja, antes de vir para cá não tinha contato com essas culturas, então, não era obrigada a saber que chamar alguém de árabe e muçulmano era generalizar e ser racista. E, no mais, ele, como policial, tinha o dever de ir atrás e pegar o cara em vez de me fazer esse tipo de observação. Eu tive a impressão de valores trocados ali, de que o medo de parecer racista provoca uma certa omissão nas autoridades. Eles parecem que confundem impor a lei com ser racista.
Na faculdade da Sorbonne onde faço História da Arte criaram uma sala de oração para os muçulmanos. Muitos até saem da sala de aula pra ir até lá rezar. Ora, estamos ou não em um país laico? Se não é possível ter capelas nas universidades públicas, então, por que ter uma sala de reza muçulmana? Dois pesos e duas medidas?

Em Argenteuil, que foi um dos berços do impressionismo, hoje praticamente só se vê mulher muçulmana (mesmo sem véu), muitos homens na rua (em comparação com o número de mulheres) e você, mulher sozinha, é tão assediada que chega a ser irritante. Não sei como a França vai resolver essa questão, muito complexa. Muitos desses imigrantes não querem saber da cultura do país que os abriga. E a França sabe muito bem que, por mais que hospede os muçulmanos, e são 5 milhões no país, não há uma convivência sem tensão, porque eles vivem praticamente à margem, em comunidades que se sentem discriminadas por não partilhar o melhor da França. Ali, muitos jovens cultivam valores e hábitos religiosos que nada têm a ver com a sociedade laica e republicana da qual os franceses se orgulham. É um prato cheio para alimentar o fundamentalismo."

Por: Ruth de Aquino – Revista ÉPOCA