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segunda-feira, 18 de maio de 2020

Suécia, vida e morte - O Globo

Demétrio Magnoli


O colapso econômico cobra vidas

Os secretários estaduais de Saúde bateram a porta na cara do agora ex-ministro Nelson Teich. Diante de uma proposta de diretrizes sobre níveis de distanciamento social, responderam que, enquanto a curva da epidemia sobe, não é hora de discutir o assunto. Nossa polarização política reflete-se como guerra retórica entre dois extremismos. Num polo, Bolsonaro e seus lunáticos fantasiam-se de defensores da economia e dos empregos. No extremo oposto, configura-se um fundamentalismo epidemiológico que, vestido com a roupagem da ciência, exibe-se como o exército da vida. A Suécia oferece uma alternativa à dicotomia irracional.

O país escandinavo rejeitou a polaridade filosófica vida versus morte e sua tradução estratégica: saúde pública versus economia. Distinguindo-se de quase toda a Europa, navega por medidas brandas de isolamento social que não abrangem quarentenas extensivas. O fundamentalismo epidemiológico acusou-a de renegar a ciência, cotejou sua taxa de mortalidade por Covid (34 por 100 mil) com a de seus vizinhos (Noruega: 4,3; Finlândia: 5,1) e, num julgamento sumário, declarou-a culpada de desprezo pela vida.


O governo sueco não classificou a doença como “uma gripezinha”, recusando o negacionismo. Como o resto da Europa, definiu o objetivo de “achatar a curva”. Mas modulou a estratégia para o longo prazo, estimando que a vacina tardará. Aceitou, portanto, taxas maiores de óbitos imediatos, em troca da mesma mortalidade que os outros no horizonte da imunidade coletiva. No plano epidemiológico, um veredicto justo deve aguardar o momento redentor da vacinação em massa.

O parâmetro sueco não é suprimir o vírus pelo bloqueio social, mas evitar as mortes evitáveis — ou seja, preservar a capacidade hospitalar de atendimento de casos graves. Nesses dias, após “achatar a curva”, os governos europeus começam suas reaberturas, ainda em meio a milhares de contágios. Todos rendem-se ao mesmo parâmetro — e, claro, enfrentam a voz indignada dos anjos da vida.

Os anjos estão errados, por motivos pragmáticos e filosóficos. O colapso econômico cobra vidas. A depressão mundial lançará cerca de 130 milhões de pessoas na vala da fome. O desemprego crônico, com seu cortejo de alcoolismo e opioides, corta a expectativa de vida em mais de cinco anos
Por que a vida de um faminto ou de um desempregado vale menos que a de um infectado pelo vírus?

A Suécia levou em conta um valor que escapa ao domínio epidemiológico: as liberdades civis. Quarentenas prolongadas achatam direitos, tanto quanto a curva de contágios. A liberdade ou a segurança? No caso da Aids, que matou 32 milhões, jamais restringimos as atividades sexuais, impondo legalmente testagens aos parceiros para evitar a difusão do vírus. A filosofia moderna nasceu com a declaração do direito à revolta contra governos tirânicos. A escolha de viver em liberdade deflagra rebeliões, que causam conflitos e mortes.

No plano dos valores, quarentenas justificam-se pela interdição ética fundamental de deixar pacientes morrerem sem tratamento apropriado. Itália, Espanha e França recorreram ao lockdown precisamente diante desse abismo. A Alemanha, que não chegou perto dele, preferiu uma quarentena moderada — e começa a reabrir em nome dos “direitos constitucionais”.

O exemplo sueco não indica que os italianos erraram — e não serve para moldar as respostas brasileiras a uma curva exponencial. Por outro lado, é a bússola mais precisa para nortear o debate, em todos os lugares, sobre lockdowns, quarentenas e flexibilizações. A epidemiologia militante, iracunda e intolerante, não tem o direito de invocar uma aliança preferencial com a vida, rotulando como arautos da morte os que ousam contestar suas receitas.

Demétrio Magnoli, jornalista - O Globo


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Uma brasileira nos subúrbios muçulmanos de Paris



"Falar assim é complicado", disse o policial, quando identifiquei como árabe e muçulmano o homem que me agrediu. "Soa racista"
"Há uns dois anos, tive um problema com meu visto e precisei alugar um quarto em uma cité. Para quem não sabe, cités são moradias subvencionadas pelo governo, onde as pessoas pagam de acordo com a renda - ou não pagam nada, em alguns casos. Em geral, mora ali quem tem uma renda mais modesta.

O problema é que muitos desses lugares viraram guetos de imigrantes, principalmente do norte da África e pessoas de religião muçulmana. A cité onde morei não era exclusivamente um gueto de imigrantes, mas havia um razoável número de argelinos, tunisianos e marroquinos. Não havia assaltos, não vi grandes brigas, mas uma tensão permanente cortava o ar.

Não havia muitas mulheres na rua e as que eu encontrava eram, em grande parte, muçulmanas. Usavam o véu e a roupa (não a burca, que cobre tudo menos os olhos). Moravam ali também as africanas, com seus vestidos coloridos. O que acontecia é que eles não se misturavam. As mulheres de véu, na maioria das vezes, andavam rápido, olhando para o chão, geralmente acompanhadas pelos filhos.

Nos cafés, só homem. Não parecia a França, ao menos a França que nós imaginamos. Eu me sentia, sim, um pouco intimidada por isso, principalmente quando passava em frente a um desses lugares onde os homens se reuniam. Claro que no Brasil há as cantadas machistas e tudo o mais, mas não é isso que esperamos ao vir para a França, o país conhecido pela igualdade e pela luta dos direitos das mulheres. Uma vez, um homem pediu uma informação e, pelo sotaque e vestimenta, vi que parecia um muçulmano do norte da África. Quando dei a informação, ele tentou me agarrar. Como estava com uma sombrinha, dei uma batida nele, ele saiu correndo e fui reclamar para um policial. E quando o policial perguntou como o homem era, eu o descrevi e disse: "era um árabe com vestido, esses vestidos de muçulmano". E o policial me respondeu: "falar assim é complicado, soa racista".

Ora, eu tinha sido quase agredida, sou brasileira, ou seja, antes de vir para cá não tinha contato com essas culturas, então, não era obrigada a saber que chamar alguém de árabe e muçulmano era generalizar e ser racista. E, no mais, ele, como policial, tinha o dever de ir atrás e pegar o cara em vez de me fazer esse tipo de observação. Eu tive a impressão de valores trocados ali, de que o medo de parecer racista provoca uma certa omissão nas autoridades. Eles parecem que confundem impor a lei com ser racista.
Na faculdade da Sorbonne onde faço História da Arte criaram uma sala de oração para os muçulmanos. Muitos até saem da sala de aula pra ir até lá rezar. Ora, estamos ou não em um país laico? Se não é possível ter capelas nas universidades públicas, então, por que ter uma sala de reza muçulmana? Dois pesos e duas medidas?

Em Argenteuil, que foi um dos berços do impressionismo, hoje praticamente só se vê mulher muçulmana (mesmo sem véu), muitos homens na rua (em comparação com o número de mulheres) e você, mulher sozinha, é tão assediada que chega a ser irritante. Não sei como a França vai resolver essa questão, muito complexa. Muitos desses imigrantes não querem saber da cultura do país que os abriga. E a França sabe muito bem que, por mais que hospede os muçulmanos, e são 5 milhões no país, não há uma convivência sem tensão, porque eles vivem praticamente à margem, em comunidades que se sentem discriminadas por não partilhar o melhor da França. Ali, muitos jovens cultivam valores e hábitos religiosos que nada têm a ver com a sociedade laica e republicana da qual os franceses se orgulham. É um prato cheio para alimentar o fundamentalismo."

Por: Ruth de Aquino – Revista ÉPOCA