Demétrio Magnoli
O colapso econômico cobra vidas
Os secretários estaduais de Saúde bateram a porta na cara do agora
ex-ministro Nelson Teich. Diante de uma proposta de diretrizes sobre
níveis de distanciamento social, responderam que, enquanto a curva da
epidemia sobe, não é hora de discutir o assunto. Nossa polarização
política reflete-se como guerra retórica entre dois extremismos. Num
polo, Bolsonaro e seus lunáticos fantasiam-se de defensores da economia e
dos empregos. No extremo oposto, configura-se um fundamentalismo
epidemiológico que, vestido com a roupagem da ciência, exibe-se como o
exército da vida. A Suécia oferece uma alternativa à dicotomia
irracional.
O país escandinavo rejeitou a polaridade filosófica vida versus morte e
sua tradução estratégica: saúde pública versus economia. Distinguindo-se
de quase toda a Europa, navega por medidas brandas de isolamento social
que não abrangem quarentenas extensivas. O fundamentalismo
epidemiológico acusou-a de renegar a ciência, cotejou sua taxa de
mortalidade por Covid (34 por 100 mil) com a de seus vizinhos (Noruega:
4,3; Finlândia: 5,1) e, num julgamento sumário, declarou-a culpada de
desprezo pela vida.
O governo sueco não classificou a doença como “uma gripezinha”,
recusando o negacionismo. Como o resto da Europa, definiu o objetivo de
“achatar a curva”. Mas modulou a estratégia para o longo prazo,
estimando que a vacina tardará. Aceitou, portanto, taxas maiores de
óbitos imediatos, em troca da mesma mortalidade que os outros no
horizonte da imunidade coletiva. No plano epidemiológico, um veredicto
justo deve aguardar o momento redentor da vacinação em massa.
O parâmetro sueco não é suprimir o vírus pelo bloqueio social, mas
evitar as mortes evitáveis — ou seja, preservar a capacidade hospitalar
de atendimento de casos graves. Nesses dias, após “achatar a curva”, os
governos europeus começam suas reaberturas, ainda em meio a milhares de
contágios. Todos rendem-se ao mesmo parâmetro — e, claro, enfrentam a
voz indignada dos anjos da vida.
Os anjos estão errados, por motivos pragmáticos e filosóficos. O colapso
econômico cobra vidas. A depressão mundial lançará cerca de 130 milhões
de pessoas na vala da fome. O desemprego crônico, com seu cortejo de
alcoolismo e opioides, corta a expectativa de vida em mais de cinco
anos.
Por que a vida de um faminto ou de um desempregado vale menos que a
de um infectado pelo vírus?
A Suécia levou em conta um valor que escapa ao domínio epidemiológico:
as liberdades civis. Quarentenas prolongadas achatam direitos, tanto
quanto a curva de contágios. A liberdade ou a segurança? No caso da
Aids, que matou 32 milhões, jamais restringimos as atividades sexuais,
impondo legalmente testagens aos parceiros para evitar a difusão do
vírus. A filosofia moderna nasceu com a declaração do direito à revolta
contra governos tirânicos. A escolha de viver em liberdade deflagra
rebeliões, que causam conflitos e mortes.
No plano dos valores, quarentenas justificam-se pela interdição ética
fundamental de deixar pacientes morrerem sem tratamento apropriado.
Itália, Espanha e França recorreram ao lockdown precisamente diante
desse abismo. A Alemanha, que não chegou perto dele, preferiu uma
quarentena moderada — e começa a reabrir em nome dos “direitos
constitucionais”.
O exemplo sueco não indica que os italianos erraram — e não serve para
moldar as respostas brasileiras a uma curva exponencial. Por outro lado,
é a bússola mais precisa para nortear o debate, em todos os lugares,
sobre lockdowns, quarentenas e flexibilizações. A epidemiologia
militante, iracunda e intolerante, não tem o direito de invocar uma
aliança preferencial com a vida, rotulando como arautos da morte os que
ousam contestar suas receitas.