(O) Barba de molho
A matriz da insegurança jurídica galopante hoje no Brasil é o STF, fonte da instabilidade sobre a qual Lula se reinventa a ponto mesmo de raptar adversários para seu discurso
Então nos
acercamos do momento decisivo em que a Justiça responderá ao cidadão brasileiro
— sobre o mais visível dos casos — se tem mesmo, conforme acusam historicamente
os petistas, seus privilegiados, se está ou não a serviço do establishment; se
é para todos ou não. Aqui, porém, o drama convida a ironia. Isso porque é Lula
— o homem do povo — o sujeito cujo futuro, em 2018, dirá se, apesar da
Lava-Jato, nada mudou; se as cortes superiores deste país continuarão
rebolando, jurisprudência formada e reformada segundo o vento partidário na
biruta, para que os poderosos assim permaneçam.
O porvir
do ex-presidente esclarecerá se ele é ou não um poderoso; se é um dos
intocáveis em função dos quais, fulanizadas, as leis se aparam; se é ou não,
retórica popular à parte, um representante das elites contra as quais porção
resistente de seus eleitores sempre votou. E aí? Tudo o
mais constante, uma vez cumpridos os ritos recursais e de acordo com o
entendimento corrente do Supremo Tribunal Federal: Lula será preso. Isso se as
regras de hoje valerem amanhã. Alguém, entretanto, apostaria nisso? Com
firmeza, alguém? Embora só agora o jornalismo tenha lançado a devida atenção ao
movimento, faz meses — sempre com o destino do ex-presidente no radar — que o
STF testa, em suas turmas, derrubar a jurisprudência que autoriza que um réu,
uma vez condenado em segunda instância, possa ser preso.
A
preparação do terreno foi — é — primorosa: depois de tatear a cancha, medindo a
reação da sociedade frente à intenção, o tribunal de Cármen Lúcia ora simula
uma dança de cadeiras, uma troca de convicções, Gilmar para um lado, Rosa Weber
para outro, tudo para que, afinal, aquele que não havia participado da
deliberação anterior, Alexandre de Moraes, pronuncie-se pela flexibilização da causa, talvez de modo a subir um grau na exigência e condicionar — para que a
prisão seja possível — a condenação em um segundo órgão colegiado; no caso de
Lula, o STJ. Uma lambada para que escape da cadeia.
Alguém
duvida? Sobretudo: alguém duvida de que juízes de nossa corte máxima se
orientem não em relação a fatos, mas a nomes? Há mais de ano escrevo que a
matriz da insegurança jurídica galopante hoje no Brasil é o Supremo, fonte da
instabilidade sobre a qual Lula se reinventa a ponto mesmo de raptar
adversários para seu discurso. Ou haverá outra maneira de ler as declarações de
autoridades — Temer, Alckmin, Doria, Maia, Meirelles etc. — segundo as quais,
para a pacificação democrática do país, melhor seria que o ex-presidente
disputasse a eleição e fosse derrotado nas urnas? [são afirmações sem suporte legal/jurídico, e até irresponsáveis; os que as proferem, fingem esquecer que URNA NÃO É JUIZ nem ELEIÇÕES SÃO ANISTIA.]
Isso —
essa barbaridade, essa ignorância política, esse desrespeito à ordem
institucional, deturpação que é o próprio sonho do lulismo — significa passar a
mão na bunda da ideia de Justiça e transformar o que é um processo judicial em
disputa eleitoral, como se o julgamento fosse exercício de exceção, como se o
juiz fosse um oponente de Lula, o perseguido. Estou
errado? Não é essa a estratégia esquerdista, bovinamente chancelada por seus
adversários? Ou será a universalização desse discurso pela classe política puro
medo e método? Já defendi a tese de que políticos querem o ex-presidente
candidato porque isso traduziria o absoluto triunfo da impunidade, a Lava-Jato
tombada ante o establishment: se Lula, mesmo condenado em segunda instância,
vencer tudo o que há contra si e puder (alguém descarta a possibilidade?)
concorrer em outubro, o que significará haver fulminado a regra por meio da
qual deveria ser preso e, em efeito dominó, a Lei da Ficha Limpa, que o
tornaria inelegível, ninguém mais cairá. Mas esse é o cálculo dos políticos. [é dificil, improvável, mas, se tratando de Brasil é até possível que Lula concorra em outubro, mas, tal ocorrendo, vai prevalecer a velha máxima de Carlos Lacerda em relação a Getulio Vargas: "não será candidato, se for candidato não será eleito, se for eleito não tomará posse, se tomar posse será deposto."
E a deposição de Lula, se eventualmente for eleito em outubro - contra isto existe seu elevado índice de rejeição (que se fosse válido para decidir os dois candidatos que iriam a um segundo turno, Lula seria o primeiro) mais que suficiente para derrotá-lo - ocorrerá de forma legal, não golpista, haja vista que a Lei da Ficha Limpa prevê a cassação do Diploma, caso o diplomado tenha concorrido sub judice.
Aliás, a grande dúvida da próxima eleição é se Bolsonaro leva no primeiro turno ou será necessário um segundo.]
Como,
porém, lidar com as palavras, em entrevistas, de Marco Aurélio Mello, ilha
suprema para quem a prisão de Lula — como se não houvesse a jurisprudência do
STF, tribunal que integra — seria precipitada e traria riscos de caos social? [o ministro Marco Aurélio se preocupa em suas declarações mais com o impacto que causam do que com a possibilidade de que o declarado se torne realidade.] O
que é isso, senão explícita manifestação de que a lei se curva a pressões,
recua ante o mito da convulsão popular e se molda à agenda política de
apaniguados? O que é isso, senão prudência seletiva? O que é isso, senão um
habeas corpus preventivo apregoado nas páginas dos jornais? E veja que
concordo com o ministro no conceito: prisão sem trânsito em julgado é
inconstitucional. [a prisão em segunda instância não configura inconstitucionalidade, haja vista que suspende a alternativa do réu aguardar em liberdade, mas, não impede que mesmo preso ele recorra as instâncias superiores.] Muito pior do que isso, contudo, é que uma corte
constitucional ajuste entendimento a depender do réu.
Lula
jamais lidou com as ações que há contra si como matéria jurídica — ou teria
trocado de advogado, né? Para ele, a condenação em segunda instância nunca foi
dúvida. Tampouco lhe importava o placar do julgamento, porque os embargos que
lhe interessam já estão interpostos faz tempo (com adesão luxuosa de
adversários parvos ou apavorados, e de juízes covardes ou mal-intencionados): a
politização radical dos processos judiciais e a judicialização extrema do
processo eleitoral. Politicamente,
nesta altura, é erro primário de leitura analisar o tabuleiro para 2018 sem
Lula, como se fosse uma peça que se pode suprimir, apagar, do jogo com uma
sentença judicial; como se não fosse, ao contrário, a presença eleitoral em
função da qual todos se organizam. Politicamente, preso ou não, com candidatura
formalmente viável ou não, com nome na urna ou não, por meio de poste ou não:
Lula será candidato.
A questão
jurídica, no entanto, permanece a mesma: e aí, doutor, a lei é para todos ou
não; Lula é homem comum ou não?
Carlos Andreazza - editor de livros - O Globo