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quarta-feira, 3 de maio de 2017

O que o brasileiro espera do fim da vida

Como a religião influencia os desejos da população sobre o atendimento hospitalar em seus últimos dias 

A última edição da revista The Economist traz na capa aquele assunto que não combina com o café da manhã: a morte. Na maioria dos lares brasileiros, os dilemas de fim de vida também são indigestos no almoço, no jantar, no verão, no inverno, de dia, de noite. Não há tempo nem lugar para conversar sobre a única certeza da vida. Fingir que somos imortais é uma péssima escolha. Como lembra a revista, a morte é inevitável, mas a morte ruim não é. Melhor falar sobre ela.


 Paciente monitorado na disputada UTI Central do Hospital São Paulo, na Universidade Federal de São Paulo (Foto: Ricardo Correa/ÉPOCA)

O paradoxo da medicina moderna é que a notável expansão da longevidade alcançada nas últimas décadas não veio acompanhada de qualidade de vida até os últimos dias. Doenças se acumulam e são remediadas ao custo de efeitos colaterais sobrepostos. A morte raramente é rápida e indolor. Ela ocorre em hospitais remunerados segundo uma lógica perversa que valoriza a insistência em medidas invasivas. Manobras inúteis para os doentes; caras e traumatizantes para a família.

A intensidade desse fenômeno no país foi flagrada pela publicação em uma pesquisa realizada em parceria com a Kaiser Family Foundation em quatro países: Estados Unidos, Japão, Itália e Brasil. Pessoas acima de 18 anos foram entrevistadas por telefone. A maioria havia perdido amigos próximos ou familiares nos cinco anos anteriores. No Brasil, participaram mais de 1.200 moradores de todas as regiões e com diferentes níveis de escolaridade.

Quando convidados a refletir sobre o próprio fim em um hospital, 50% dos brasileiros disseram que prolongar a vida o máximo possível seria extremamente importante um índice muito superior ao encontrado nos demais países (19% nos Estados Unidos, 13% na Itália e 9% no Japão). Os brasileiros dão mais valor ao prolongamento dos dias do que à redução da dor, do desconforto e do estresse. Um padrão verificado apenas no Brasil.

Segundo a análise dos investigadores, a fé ajuda a explicar o resultado. Entre os brasileiros, 83% disseram que a religião influencia fortemente a concepção que eles têm sobre os cuidados que gostariam de receber no final da vida. Nos Estados Unidos, 50% fizeram essa afirmação. Na Itália, 46%. No Japão, apenas 13%.


O retrato capturado pela The Economist é percebido diariamente nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) brasileiras. A forte religiosidade leva as famílias e os médicos a insistir em tentativas fúteis de evitar o curso natural da morte. A insistência nesse caminho contribui para o mau uso dos leitos disponíveis na rede pública de saúde. Grande parte das vagas fica ocupada por longo tempo por pessoas sem possibilidade de recuperação.

Na rede privada, ocorre o inverso. Como há excesso de leitos, os hospitais têm interesse em mantê-los ocupados para cobrar diárias dispendiosas dos planos de saúde. Não é incomum que pacientes em condições de ser acompanhados fora da UTI sejam mantidos na unidade por mais tempo. Ou que haja um estímulo das instituições para que os médicos insistam em procedimentos capazes de prolongar a internação, ainda que o doente não seja recuperável. Os cuidados paliativos, que poderiam trazer conforto e dignidade aos doentes, raramente recebem a mesma valorização.


As difíceis decisões que envolvem os últimos dias poderiam ser menos dolorosas se as pessoas se preocupassem em fazer um testamento vital. Essa é uma declaração que qualquer cidadão acima de 18 anos pode registrar em cartório, sem necessidade de advogado. O documento orienta a família e os médicos a respeito dos procedimentos que o indivíduo gostaria de receber, em caso de doenças crônicas ou acidentes graves sem possibilidade de recuperação. 

Em 2012, o Conselho Federal de Medicina (CFM) determinou que os médicos respeitem a vontade do paciente incapacitado de se manifestar, caso ele tenha se preocupado em deixá-la registrada previamente. Poucos deixam – o que pode significar a renúncia a uma morte digna. É preciso romper a conspiração do silêncio e conversar sobre o assunto. Que tal hoje? 

Por: Cristiane Segatto, repórter especial de ÉPOCA 
cristianes@edglobo.com.br

>> Especial multimídia: Quando a UTI prolonga o sofrimento

 

sábado, 24 de dezembro de 2016

Sem leitos de UTI, quem os médicos devem salvar?


Pacientes graves esperam até dois dias por vaga na terapia intensiva em São Paulo, revela estudo inédito do Conselho Regional de Medicina 

De todas as formas de desigualdade, a injustiça na saúde é a mais chocante e desumana”. 

A escolha da frase do líder Martin Luther King, Jr. não é mero detalhe no artigo que a médica Flávia Machado publicou na edição de ontem do The New England Journal of Medicine. É a mais perfeita tradução da realidade que ela enfrenta numa das unidades de terapia intensiva (UTI) do Hospital São Paulo, na capital paulista.

O relato de Flávia dá a justa medida da precariedade enfrentada pelos médicos que tentam fazer o melhor num cenário de progressivo sucateamento da saúde pública. Se para os profissionais o dilema é moral, para os pacientes é questão de vida ou morte.
São 7 horas da manhã e, mais uma vez, precisamos decidir quem ocupará um leito na unidade de terapia intensiva (UTI) depois de uma cirurgia eletiva. Uma avó de 55 anos com câncer de intestino? 
Um idoso com metástase no fígado? 
Uma jovem que sente dor e precisa de cirurgia numa articulação para continuar a trabalhar e sustentar a família?

Deveríamos escolher ou recusar os pacientes que têm câncer?  
Deveríamos fazer escolhas baseadas na idade? Na qualidade de vida prévia? 
Ou no impacto social, se, por exemplo, o doente tem quatro crianças para criar? 
Devemos oferecer o leito a quem já o negamos antes? 
Ou devemos simplesmente deixar de brincar de Deus e conceder a vaga a qualquer pessoa que tenha pedido antes?

Escolhas – por vezes, trágicas – são feitas. “Na maioria dos dias alguém fica sem leito”, me disse Flávia. Ela não trabalha num hospital perdido no meio do sertão no estado mais pobre do país. Pelo contrário. Flávia dirige o setor de terapia intensiva da disciplina de anestesiologia da Escola Paulista de Medicina, uma instituição de referência ligada à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

>> Artigo completo de Flávia Machado publicado no The New England Journal of Medicine

“Os frequentes cortes de verba nos hospitais federais pioram a qualidade do nosso atendimento”, diz ela. “Muitas vezes, um paciente da UTI está pronto para receber alta e liberar o leito, mas não há lugar para ele em outra ala do hospital.”

O problema não se resume às instituições federais. Um estudo do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), publicado com exclusividade por esta coluna, revela que pacientes graves esperam até dois dias por um leito de UTI em São Paulo. Doentes que não conseguem respirar sozinhos e precisam de entubação são acomodados nos leitos de retaguarda dos pronto-socorros.  “Isso é gravíssimo porque o doente está numa situação clínica instável e precisa de atendimento constante”, diz o psiquiatra Mauro Aranha, presidente do Cremesp. “Por lei, o paciente só pode ficar 24 horas no pronto-socorro à espera de vaga na UTI”.

A crise na saúde, com subfinanciamento em todos os níveis de atendimento, motivou o Cremesp a realizar o estudo. Diretores clínicos de 15 hospitais públicos ou filantrópicos (confira a lista abaixo) relataram os problemas vividos em suas instituições, com a condição de que não fossem reveladas quais deficiências ocorrem em quais hospitais.
As principais queixas dos diretores clínicos:
A taxa de ocupação nos pronto-socorros é superior a 100%
• Os leitos que seriam dedicados à observação se transformam em leitos improvisados de UTI
• Há dificuldade para conseguir vaga para cirurgias eletivas, principalmente ortopédicas, com demora de três a quatro semanas para o paciente ser operado
Faltam vagas para cirurgias especializadas de urgência (como as neurológicas e vasculares ou os traumas cranioencefálicos)
• Na área clínica, há demanda reprimida por algumas especialidades, como endocrinologia

Há dificuldade para compra de implantes para realizar procedimentos, principalmente de mama, quadril, joelho e coluna

Os hospitais que participaram do levantamento:
• Casa da Saúde Santa Marcelina
• Conjunto Hospitalar do Mandaqui
• Hospital Central da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo
• Hospital do Servidor Público Estadual Francisco Morato de Oliveira
• Hospital do Servidor Público Municipal
• Hospital Geral de Taipas
• Hospital Geral de Vila Nova Cachoeirinha
• Hospital Ipiranga
• Hospital Municipal Dr. Arthur Ribeiro de Saboya (Jabaquara)
• Hospital Municipal de Campo Limpo
• Hospital Municipal Professor Waldomiro de Paula
• Hospital São Paulo (Unifesp)
• Hospital Universitário da USP
• Hospital Municipal Professor Dr. Alípio Correa Neto
• Hospital Regional Sul


>> No Brasil, a conta da saúde fica com a prefeitura
 >> Mais colunas de Cristiane Segatto

O que as autoridades têm a dizer? O secretário municipal de saúde Alexandre Padilha participou de uma das reuniões do Cremesp. Disse que vai repassar as queixas à equipe do prefeito eleito João Doria, que assume em janeiro. “Há déficit de mil leitos na cidade de São Paulo, que ficou dez anos sem abrir um hospital municipal”, disse Padilha na reunião.
O secretário estadual David Uip não foi a nenhuma das reuniões. Na última delas, uma advogada enviada pela pasta ouviu os relatos e disse que a Secretaria Estadual de Saúde está disposta a conversar com os profissionais para melhorar as condições dos hospitais.

Gostaria de encerrar meu último texto de 2016 com uma mensagem de esperança. Não deu. Só posso agradecer a valorosa companhia de cada um de vocês e trabalhar sempre pela redução da mais chocante e desumana forma de desigualdade.

Colunas de Cristiane Segatto 620x70 (Foto: Época)