José Roberto Batochio
Convocar manifestação contra o Congresso e o STF constitui atentado à democracia
"Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito.
Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as
demais que têm sido experimentadas de tempos em tempos” - Winston Churchill, discurso na Câmara dos Comuns em 1947.
[Na leitura, hoje vespertina, do Estadão estranhamos a interpretação da Constituição feita pelo ilustra articulista.
Afinal, ele é mais um que quando a esquerda faz alguma estrepolia logo dizem que foi com base na Constituição Federal, porém, quando o Presidente Bolsonaro, exercitando um direito de cidadão previsto na Constituição - o da liberdade de expressão, liberdade de se reunir pacificamente - convida cidadãos para uma manifestação logo dizem que o ato do Presidente é um atentado a democracia.
Não é surpresa o posição expressa na matéria, quando interpreta a Constituição contra o presidente Bolsonaro, se trata do ex-defensor do criminoso condenado Lula - que, felizmente fracassou na empreitada a favor do petista.]
Quando pronunciou a frase que se tornaria o mantra da democracia através
dos tempos, Churchill era um deputado que acabara de experimentar as
agruras desse sistema político, baseado no voto popular. Dois anos
antes, a 2.ª Guerra Mundial ainda nem havia acabado, mas o gigante que
conduzira a Inglaterra na vitória dos Aliados contra o nazi-fascismo foi
derrotado nas eleições e deixou o cargo de primeiro-ministro. Muitos se
revoltaram contra o que entenderam ingratidão dos ingleses, porém o
estadista não se abalou: “Eles têm o direito perfeito de nos enxotar.
Isso é democracia. É por isso que estamos lutando”.
Noutras circunstâncias, quando os inimigos da democracia insistem em
atacá-la, os democratas é que devemos arrogar não só o direito, mas o
dever de defendê-la. Nossos tempos talvez sejam, desde a grande corrente
libertária forjada pelo pós-guerra dos anos 1940, os mais adversos a
esse sistema de governo em que o povo detém, pelo voto igualitário, o
controle de seu destino político. A democracia representativa, em
especial, é submetida a um descrédito que no fundo alveja a política
como instrumental de administração e solução institucional dos conflitos
na sociedade. A todo instante se escreve o epitáfio da representação
política e são, de fato, visíveis os sinais de insatisfação dos
eleitores com seus representantes. A pesquisa Barômetro das Américas,
realizada de dois em dois anos pela Universidade Vanderbilt, dos Estados
Unidos, com apoio no Brasil da Fundação Getúlio Vargas, revelou em sua
última rodada, em 2019, que 58% dos brasileiros não estão satisfeitos
com o funcionamento da democracia no País, mas, dando razão a Churchill,
um porcentual maior, 60%, acha que ela ainda é a melhor forma de
governo. Um hiato autoritário imposto por um golpe antidemocrático conta
com a simpatia de 35% dos brasileiros, mas a maioria de 65% rejeita a
ideia.
Os dados permitem a ilação de que, por maior que seja o desalento com a
democracia, é majoritária a preferência nacional por mantê-la como a
melhor forma de governo. Trata-se, portanto, de aperfeiçoá-la,
extirpar-lhe os defeitos, que mais se devem aos que estão no topo da
representação do que às vicissitudes dos representados. Constitui
truísmo observar que as instituições democráticas são maiores do que os
homens que as conduzem.
Fundamento básico da democracia é uma Constituição que avalize a
isonomia republicana, assim como a clássica separação e independência
harmônica dos Poderes, os quais, desempenhando papéis específicos, atuam
como contrapesos recíprocos. Como no preceito bíblico, a democracia dá a
César e a Deus o quinhão que lhes compete. Daí ser inadmissível que
integrantes de um dos três Poderes do Estado, extrapolando suas funções
discricionárias, embarque na temeridade de limitar a atuação de outro.
Quando disputam a preferência do eleitor, os membros do Parlamento e do
Executivo podem até apresentar programas eleitorais contendo tais
limitações, mas para aplicá-las, já investidos no cargo, devem observar a
liturgia constitucional. E na maioria das vezes, como regra do processo
democrático, carecem do concurso do Poder em questão para alcançar seus
objetivos reformadores. O que não podem é apelar para as “vozes das
ruas” com o fim de se fortalecer e intimidar o Poder que, em avaliação
autoritária, lhe nega um quinhão maior do que aquele que lhe está
atribuído, invocando a fúria dos 35% que apoiam o hiato autoritário.
Divergências de governança entre os Poderes são naturais, mas cabe ao
Executivo, embora igualmente eleito pelo povo, reconhecer que o
Legislativo é o poder popular por excelência, porquanto diverso, plural,
reunião eclética e sincrética das correntes que pulsam na sociedade,
formando um mosaico que a contradição democrática tende a transformar em
síntese da vontade nacional. Todo ato que emana do Parlamento,
obviamente chancelado pela maioria, é um ato federativo que as minorias
são obrigadas a respeitar - e o axioma vale para os demais Poderes,
cabendo apenas ao Judiciário escrutinar a conformidade constitucional
das decisões. Quando o Executivo exorta seus acólitos em busca de apoio não
propriamente à sua linha política, mas para intimidar os demais Poderes,
expõe de forma condenável sua incapacidade de governar segundo a ordem
democrática. Tal procedimento é típico de governos que não lograram
cumprir promessas de campanha, frustraram eleitores e deram razão à
oposição, buscando responsabilizar um “inimigo externo” por seu
fracasso. Se a regra era culpar a imprensa, agora agitam as redes
sociais. No andar dessa carruagem, a convocação do presidente da
República para que seus correligionários venham às ruas, em
manifestações contrárias à independência e autonomia do Congresso e do
Supremo Tribunal Federal, constitui um atentado à democracia que faria
Churchill novamente ir à luta, como o fez contra o Terceiro Reich.
José Roberto Batochio, advogado criminalista e ex-defensor do multicondenado Lula da Silva - O Estado de S. Paulo