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domingo, 19 de janeiro de 2020

Um pensador para a nossa era. Um filósofo e não um formado em filosofia - J R Guzzo



Gazeta do Povo



Não vamos cometer aqui o insulto de chamar Roger Scruton, o filósofo inglês morto neste fim de semana, aos 75 anos, de “importante”.  Esta é uma palavra que se tornou horrivelmente barata nos últimos anos, a ponto de não significar mais nada – serve apenas para elogiar alguém de graça, quando não se consegue achar méritos objetivos na obra do elogiado, ou mesmo quando não há obra nenhuma a elogiar.  Temos, assim, o escritor “importante”, o artista “importante”, o cineasta “importante” e por aí afora; como não dá para dizer que fizeram alguma coisa de excelência comprovada, ou se fizeram realmente alguma coisa, confere-se a todos eles o título de “importante” e todo mundo fica feliz.



Scruton foi, isso sim, um extraordinário pensador dos tempos em que vivemos – um filósofo de verdade, e não um cidadão que se formou em filosofia, ou dá aulas na universidade, ou escreve sobre o assunto, sem a obrigação de ter, nunca, alguma ideia própria.  Ao longo dos últimos 50 anos, e nas páginas de 50 livros, Roger Scruton deixou uma imensa produção de pensamentos essenciais para a visão conservadora da vida e do mundo na era contemporânea – um filósofo da grande linhagem de Edmund Burke e os outros gigantes ingleses que lançaram os alicerces das ideias que regem até hoje as sociedades livres. “Pessoas de esquerda acham muito difícil conviver com pessoas de direita, porque acreditam que elas sejam o mal”, escreveu ele numa das sínteses mais devastadoras que fez das disputas ideológicas de hoje. “Eu, do meu lado, não tenho problema nenhum em me dar bem com elas, porque simplesmente acredito que estão enganadas”.


O filósofo britânico ganhou notoriedade no Brasil no final dos anos 2000 e cada vez mais seus livros ganham versões nacionais. Mas, afinal, qual é a essência de seu pensamento?



Scruton dedicou-se com aplicação especial, entre a vasta obra que deixou, às questões da estética, da cultura e da política. A qualidade de uma obra artística, para ele, podia, sim, ser estabelecida por critérios objetivos – a beleza é a base dessa avaliação, e beleza não é um conceito abstrato, e sim uma realidade materialmente visível.  “Estilos vão e vêm”, escreveu Roger Scruton, “mas as exigências do julgamento estético são permanentes”. Ele jamais teve medo de dizer que a “equalização” da cultura, tão venerada entre a esquerda como arma para combater o “elitismo”, é um disparate.


Não faz nenhum sentido, em sua visão, alegar que a alta cultura, ou a “cultura clássica”, é uma espécie de “propriedade da elite” e só beneficia os que têm acesso a ela; seria o mesmo que sustentar que a matemática não adianta nada para quem não a entende em seus níveis mais avançados. “O processo de transmissão cultural não poderá sobreviver se os professores forem obrigados a ensinar Mozart e Lady Gaga ao mesmo tempo, em nome de uma agenda de igualitarismo, resumiu Scruton.   

É dele, também, uma das mais precisas explicações sobre porque os intelectuais, em sua grande maioria, são de esquerda. “Eles são atraídos naturalmente pela ideia de uma sociedade planejada porque acreditam que o planejamento ficará a seu cargo”. O que atrai os intelectuais no marxismo, diz Scruton, não é a verdade, mas o poder que ganhariam se o mundo fosse controlado pelo Estado – e, em consequência, por eles.A notável capacidade de sobrevivência do marxismo”, conclui, “está no fato de que é um sistema de pensamento dirigido para a obtenção do poder.”



O que Roger Scruton ainda poderia produzir, nos próximos anos, vai nos fazer uma imensa falta.

J R Guzzo, jornalista - Vozes - Gazeta do Povo 


segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O que é ser conservador? - Denis Lerrer Rosenfield


O Estado de S.Paulo

O que é ser conservador? - Significaria conservar os valores da família, a tradição libertina ou a liberdade de escolha?

Ser conservador encerra muitas significações, sem que, muitas vezes, se saiba ao certo do que se está falando. Ultimamente, no País, estamos presenciando uma onda dita conservadora, como se, com esse termo, uma acepção de todos conhecida pudesse ser facilmente percebida. Ser conservador, à maneira de Edmund Burke, significava, na época, manter as tradições inglesas, a monarquia constitucional e os valores vigentes, dentre os quais seus preconceitos em relação ao capital financeiro, aos agiotas e aos judeus, que ele acreditava serem aqueles similares a estes. Conservar a tradição e os valores pode igualmente significar aceitação acrítica de toda uma História recebida. Sua repercussão deveu-se, sobretudo, à sua crítica à Revolução Francesa, à concepção democrática que então emergia e a seus excessos no Terror, à concepção jacobina, que terminou se estendendo até o século 20. São valores históricos que estão assim em pauta.

Ser conservador, no Brasil de hoje, coloca precisamente a questão dos valores e da tradição a ser preservada. O discurso político é fortemente contaminado pelo conservadorismo sem que sua acepção seja definida. Cobra-se apenas que o inimigo seja aquele que não a compartilha, sem que o compartilhado, contudo, seja explicitado. Evidentemente, não se pode seriamente cogitar de uma monarquia constitucional do tipo da inglesa, por mais que dom Pedro II tenha sido um grande imperador, ímpar em seu tempo. Essa tradição se teria perdido no período republicano, salvo se entendermos por ser conservador a restauração da monarquia brasileira. Não é essa, porém, a pauta do atual governo, centrado na figura de um presidente que procura impor suas concepções, sem recorrer à História do País.


A pauta conservadora parece residir nos costumes, mas mesmo aí a questão é controversa, pois diz respeito a qual valor deveria ser preservado. Os atuais representantes dessa posição se referem explicitamente à pauta dos valores evangélicos, que correspondem grosso modo a 30 milhões de crentes. Número certamente expressivo do ponto de vista eleitoral, mas constitutivo de uma fração da população de 220 milhões de pessoas. Não se pode, portanto, dizer que essa fração corresponda à totalidade brasileira, por mais importante que seja.

O Brasil tem uma forte tradição libertina, embora esse nome não seja empregado. O carnaval é o seu maior exemplo. Nessa esteira, o País tem uma tradição de liberdade sexual, nos últimos tempos até com questões de gênero e identidade sexual ganhando importância. Manifestações concernentes à identidade sexual ganham as ruas e contam com o apoio da população, da mesma maneira que acontece com as manifestações evangélicas. Poder-se-ia dizer que há uma contradição em termos de valores que permeiam a atualidade, porém poder-se-ia acrescentar que ambas fazem parte de um valor maior, o da liberdade de escolha, seja religiosa, seja sexual.

O que não pode, numa sociedade que se caracteriza como democrática, é uma das partes considerar a outra como “inimiga”, nas diferentes acepções desse termo – como “atrasados”, “religiosos”, “perversos”, “destruidores dos valores” –, conforme a perspectiva que se adote de um ou outro lado. Nesse sentido, caberia dizer que, se acatarmos a liberdade de escolha como valor maior, estaríamos adotando uma posição liberal, por mais que essa pauta esteja hoje limitada a uma discussão em termos de liberdade econômica, que é somente uma acepção do liberalismo. A pergunta poderia ser assim colocada: ser conservador significaria conservar os valores da família como são entendidos na concepção evangélica? Ser conservador significaria conservar a tradição libertina? Ser conservador significaria conservar a concepção liberal de liberdade de escolha?

Se a liberdade de escolha tem vigência na área dos costumes, o mesmo não acontece na econômica, na qual ela tem imensas dificuldades de ser implementada. O governo Temer começou um importante ciclo de liberalização na economia, contrapondo-se à concepção estatizante do governo Dilma e ao lulopetismo. Nesse aspecto, pode-se dizer que foi dele o combate primeiro ao “socialismo”. O governo atual segue, com as maiores dificuldades, a mesma linha, pois a reforma da Previdência nem foi ainda aprovada, a reforma tributária está sendo conduzida pelo Senado e pela Câmara e as privatizações e concessões marcham a ritmo lento. A questão a ser ressaltada reside em que o Brasil não tem uma tradição liberal, sendo essa a grande inovação.

A tradição em vigor na área econômica é estatizante, presente nos governos petistas e no período do regime militar, em particular sob a Presidência Geisel. Contudo, mesmo aqui, uma ressalva deve ser feita, a de que o governo Castelo Branco se pautou por concepções liberais. A tradição militar brasileira seria, então, liberal ou estatizante? Tudo dependeria da perspectiva e de como os militares se reconhecem em sua própria história. Mais uma amostra da complexidade que se enfrenta ao definir o que seja um conservador.

No discurso do presidente Jair Bolsonaro na ONU, esse problema foi agudo. Na verdade, ele não foi conservador ao se afastar da tradição diplomática brasileira, caracterizada por posturas de tolerância, de multilateralismo e de negociação, quando mais não seja pelo fato de o País não dispor de poderio econômico, nem força militar, para impor suas posições. Ora, em vez de conservar a sua tradição, o presidente optou por valores ditos conservadores, que são um alinhamento ao governo Trump. Ressalte-se que tal posição não corresponde à nossa História. O Brasil, do ponto de vista das relações exteriores, deveria estar baseado na estrita defesa dos seus interesses, em suas perspectivas geopolíticas de poder, e não numa cruzada por valores conservadores, seja lá o que estes signifiquem.

Denis Lerrer Rosenfield - Professor de filosofia na UFGRS -  O Estado de S. Paulo