Coluna publicada em O Globo - Economia 2 de abril de 2020
Quer dizer que o governo não tinha dinheiro para nada, nem para pagar
aposentadorias, e agora tem dinheiro de sobra para socorrer pessoas,
empresas, estados e municípios? Onde estava escondido esse dinheiro?
Melhor seria: Euros ou libra
Esse tipo de pergunta corre por aí. Na maior parte das vezes, é uma
dúvida sincera. Nem todo mundo é versado em economia, de modo que de
fato surpreende a facilidade com que, por exemplo, o ministro Paulo
Guedes fala em centenas de bilhões de reais. Pessoas sinceras também se
surpreendem quando topam com economistas clássicos, ortodoxos e/ou
liberais dizendo que é preciso gastar o que for preciso para combater a
pandemia. Mas há também a pergunta que explicita uma crítica. Esta: os fatos
derrubaram a tese do ajuste fiscal; o governo tem dinheiro e deve
gastá-lo em tudo. Não é preciso explicitar os autores dessas críticas - é
o pessoal que levou à explosão do déficit, da dívida pública e da
consequente recessão.
Assim, convém comentar as dúvidas sinceras. Não havia, nem há
dinheiro escondido. O governo continua operando com déficit primário –
ou seja, a receita não cobre as despesas. Neste momento, em que se
aproxima uma recessão, as receitas devem cair, de modo que o déficit
aumentaria mesmo sem os gastos extras para combater o coronavírus.
E como, então, o governo vai aumentar o gasto? Do mesmo modo que
fazia antes: tomando dinheiro emprestado. E quem empresta para o
governo? Todo mundo que compra os títulos do Tesouro, incluindo as
pessoas físicas, as empresas, os bancos e investidores estrangeiros. Mas
estes são minoria, de modo que são brasileiros os que mais emprestam
para o governo brasileiro.
E quem vai pagar essa dívida que o governo está empilhando? Os
brasileiros, pagando mais impostos. Em algum momento, depois da crise, o
governo terá que voltar ao ajuste fiscal, ou seja, gastar menos do que
arrecada. Isso porque a dívida não pode aumentar sem parar. Se fosse
assim, os credores desconfiariam que o devedor vai dar o calote e
ninguém mais toparia emprestar para o governo. Gastando mais do que
arrecada e sem conseguir tomar empréstimos, o governo começa a imprimir
dinheiro, a inventar dinheiro, e o resultado é inflação. Já vimos esse
filme.
Duas conclusões importantes. A primeira: para combater a pandemia, o
governo tem que gastar porque só ele tem a capacidade de tomar dívida no
tamanho necessário. Isso é possível porque há hoje uma tolerância
mundial com o gasto público. Todo mundo minimamente sensato sabe que
estamos diante de uma catástrofe sem proporções.
A segunda conclusão: o gasto a mais de hoje tem que ser
exclusivamente voltado para os programas de combate ao coronavírus e
seus efeitos na vida das pessoas e empresas. Deve ser proibido incluir
nos pacotes qualquer gasto permanente ou dirigido a setores que não têm
nada a ver com a crise.
Nada disso é novidade. O mundo já passou por várias crises em que o
aumento do gasto público foi absolutamente necessário. Formava-se
consenso em torno disso. O que faz a diferença? É a saída da crise. No final dela, todos estão
endividados. Alguns continuam assim, achando que dinheiro pinta em
qualquer lugar, e caminham para outra crise, a econômica, com inflação,
primeiro, e recessão depois. Outros países, outras sociedades conseguem
voltar a políticas de equilíbrio.
Tudo considerado, não há contradição alguma entre pregar o equilíbrio
das contas públicas, em tempos normais, e o aumento de gastos neste
momento. E que fique claro: a conta será paga pelos brasileiros. Por
isso mesmo, o dinheiro tem que ser destinado aos mais vulneráveis.
E uma terceira conclusão: diante de uma crise dessa proporção, o
governo não precisa apenas gastar mais; precisa gastar mais e já. A
pandemia não espera a burocracia se ajeitar. As pessoas já estão em
dificuldades.
O cardápio de medidas é quase universal:
- mandar dinheiro para os mais
pobres;
- preservar empregos e salários;
- garantir auxílio desemprego;
- evitar a quebradeira de empresas; e,
- manter o equilíbrio do sistema
financeiro.
Todos os governos estão programando isso. A diferença está entre os que fazem e os que anunciam.
Carlos Alberto Sardenberg, jornalista