A censura de vez em quando aparece, aqui e em outros lugares: os censores proibiram Gustav Flaubert, na França, na segunda metade do século XIX
Em agosto do ano passado, em Bocaina (SP),
Gabriel Lucca, um menino de seis anos, aluno da professora Paula Renata
Robardelli, não queria ir para a escola no dia seguinte e entregou à mãe
um pedaço de papel rasgado onde estava escrito: “Senhores Paes, amanhã não vai ter aula porque pode ser feriado. Assinado: Tia Paulinha. É verdade esse bilete”.
O menino cometeu apenas dois erros de
ortografia, mais do que perdoáveis. Ele estava nos primeiros passos de
duas das quatro ações indispensáveis ao ensino de Português: ouvir,
falar, ler e escrever. E deu indícios de vocação diplomática: “pode ser feriado”. Talvez não seja… O guri (peixe pequenino para os tupis e, por
isso, menino) ou o piá (extraído das minha entranhas, para os
caingangues, no ponto de vista dos pais) escreveu paes, em vez de pais; e bilete, em vez de bilhete. Esses tropeços devem ser creditados mais às
notórias incoerências da grafia da norma culta da língua portuguesa do
que a insuficiências do menino. Logo ele aprenderá que a língua falada e
a língua escrita têm códigos diferentes.
Quanto ao “não vai ter aula” em vez de “não
vai haver” ou “não haverá”, é mais perdoável ainda: faz tempo que no
coloquial o verbo “ter” é usado como substitutivo de “haver”, de
“existir” e outros verbos de domínio conexo. Tia Paulinha é o apelido carinhoso da
professora, pois, se não era costume designar as professoras dos
primeiros anos por “tias”, este tratamento – apenas carinhoso, para
alguns; reprovável, para outros – vigora no ambiente escolar há algumas
décadas.
Esse “bilete” talvez não entre para a
História do Brasil. Outros, porém, mais curtos, como os do presidente
Jânio Quadros – personagem vulcânico de nossa vida política e o primeiro
professor de português a ter chegado à presidência da República — ou um
pouco mais longos, como certos despachos de ministros, já entraram.
Eles compõem histórias do Brasil duplamente
lendárias. E no capítulo da censura há “biletes” hilários, como o
despacho que em 1965 mandou prender o autor da peça Electra, que estreava no Teatro Municipal de São Paulo (SP). O autor, o grego Sófocles, morrera no Século V a.C. Lenda, do Latim medieval legenda,
designa o que deve ser lido, conhecido, como as atuais legendas de fotos
e filmes. Em nossa história, antiga ou recente, a censura está repleta
de lendas e de coisas que devem ser lidas.
Entre outros “biletes” famosos, um deles
completa 43 anos. Num ato impulsivo, o ministro da Justiça do Governo de
Ernesto Geisel proibiu um livro que se tornou o caso-síntese da luta,
por parte de quem escreve ou publica, contra a censura.
O autor era um dos diretores da Light,
é verdade este “bilete”, e está documentado. No dia 14 de dezembro de
1976, a mulher de uma autoridade recebeu de presente de uma amiga o
livro Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, então comercializado num
envelope de plástico lacrado junto com um cartão de Boas Festas. Ela leu
trechos do conto-título ao marido e este ligou para Armando Falcão,
então ministro da Justiça. É o que reza a lenda.
No dia seguinte, 15/12/1976, o Diário Oficial da União publicava o seguinte despacho do ministro: “Nos
termos do parágrafo 8º do artigo 153 da Constituição Federal e artigo
3º do Decreto-Lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970, proíbo a
publicação e circulação, em todo o território nacional, do livro
intitulado Feliz Ano Novo, de autoria de Rubem Fonseca, publicado
pela Editora Artenova S. A., Rio de Janeiro, bem como determino a
apreensão de todos os seus exemplares expostos à venda, por
exteriorizarem matéria contrária à moral e aos bons costumes.
Comunique-se ao DPF”.
Na semana passada, os ministros Dias Toffoli
e Alexandre de Moraes, do STF, acrescentaram novas páginas a proibições
deste tipo, mostrando, mais uma vez, e certamente não foram os últimos a
fazê-lo, que a censura no Brasil é um tiro pela culatra, um ato
execrável, predatório e inútil, que contraria os objetivos aos quais se
propõe: proibir, calar, vetar, impedir, prejudicar. A dupla de ministros proibiu as publicações da revista Crusoé e do site Antagonista retirando-os do ar. De novidades na truculência, somente a tecnologia e os neologismos sites que os hospedam.
A censura de vez em quando aparece, aqui e
em outros lugares: os censores proibiram Gustav Flaubert, na França, na
segunda metade do século XIX, levando o autor aos tribunais, ocasião em
que o grande escritor, apavorado, recuou covardemente e disse que o
propósito de seu romance Madame Bovary era moralizar e educar as
moças. Nos EUA, um juiz com mais modéstia do que os dois ministros
citados, solicitou parecer literário e liberou Ulisses, de James Joyce, na segunda metade do século XX.
Os dois magistrados do STF não consultaram
os colegas e nas horas seguintes já sofriam pressões de todos os lados,
incluindo a própria trincheira onde atuam para defender a Constituição. Celebremos que recuaram, mas eles têm que
recuar mais e respeitar os limites da Constituição em vigor para evitar o
triste recorde do ministro da Justiça, Armando Falcão, que, em apenas
quatro anos, proibiu mais livros do que a Inquisição nos temos
monárquicos e do que o famoso Index Librorum Proihibitorum (Índice dos Livros Proibidos) a Igreja Católica.
Rubem Fonseca recorreu à Justiça. O processo demorou 13 longos anos e, no segundo semestre de 1989, Feliz Ano Novo
foi enfim liberado, mas em apertado placar de 2 x 1, no então Tribunal
Federal de Recursos (TFR) que virou TRF depois da Constituição de 1988.
Numerosas edições piratas já tinham sido feitas por todo o Brasil,
talvez até mesmo pelo próprio editor. Infelizmente, é verdade esse bilete. E
felizmente é também verdade que dos 11 ministros a maioria deles não
pensa em censurar a palavra escrita nesses tempos em que ela já está
proibida pelo seu principal inimigo, o analfabetismo, que leva o Brasil a
ser uma nação de mais de 200 milhões de habitantes, que tem 143 milhões
de eleitores, nem todos leitores, dos quais a maioria não entende o que
ministros do STF escrevem, mas entende o que escrevem os jornalistas em
publicações como a Crusoé e o Antagonista, cujos
diretores, os jornalistas Mario Sabino e Rodrigo Rangel, emitiram nota
pública na quinta-feira passada agradecendo aos leitores a solidariedade
durante os poucos dias que a revista e o site foram mantidos sob censura.
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
http://portal.estacio.br/instituto-da-palavra
Blog do Augusto Nunes - Veja