Deonísio da Silva
Em agosto do ano passado, em Bocaina (SP),
Gabriel Lucca, um menino de seis anos, aluno da professora Paula Renata
Robardelli, não queria ir para a escola no dia seguinte e entregou à mãe
um pedaço de papel rasgado onde estava escrito: “Senhores Paes, amanhã não vai ter aula porque pode ser feriado. Assinado: Tia Paulinha. É verdade esse bilete”.
O menino cometeu apenas dois erros de
ortografia, mais do que perdoáveis. Ele estava nos primeiros passos de
duas das quatro ações indispensáveis ao ensino de Português: ouvir,
falar, ler e escrever. E deu indícios de vocação diplomática: “pode ser feriado”. Talvez não seja… O guri (peixe pequenino para os tupis e, por
isso, menino) ou o piá (extraído das minha entranhas, para os
caingangues, no ponto de vista dos pais) escreveu paes, em vez de pais; e bilete, em vez de bilhete. Esses tropeços devem ser creditados mais às
notórias incoerências da grafia da norma culta da língua portuguesa do
que a insuficiências do menino. Logo ele aprenderá que a língua falada e
a língua escrita têm códigos diferentes.
Quanto ao “não vai ter aula” em vez de “não
vai haver” ou “não haverá”, é mais perdoável ainda: faz tempo que no
coloquial o verbo “ter” é usado como substitutivo de “haver”, de
“existir” e outros verbos de domínio conexo. Tia Paulinha é o apelido carinhoso da
professora, pois, se não era costume designar as professoras dos
primeiros anos por “tias”, este tratamento – apenas carinhoso, para
alguns; reprovável, para outros – vigora no ambiente escolar há algumas
décadas.
Esse “bilete” talvez não entre para a
História do Brasil. Outros, porém, mais curtos, como os do presidente
Jânio Quadros – personagem vulcânico de nossa vida política e o primeiro
professor de português a ter chegado à presidência da República — ou um
pouco mais longos, como certos despachos de ministros, já entraram.
Eles compõem histórias do Brasil duplamente
lendárias. E no capítulo da censura há “biletes” hilários, como o
despacho que em 1965 mandou prender o autor da peça Electra, que estreava no Teatro Municipal de São Paulo (SP). O autor, o grego Sófocles, morrera no Século V a.C. Lenda, do Latim medieval legenda,
designa o que deve ser lido, conhecido, como as atuais legendas de fotos
e filmes. Em nossa história, antiga ou recente, a censura está repleta
de lendas e de coisas que devem ser lidas.
Entre outros “biletes” famosos, um deles
completa 43 anos. Num ato impulsivo, o ministro da Justiça do Governo de
Ernesto Geisel proibiu um livro que se tornou o caso-síntese da luta,
por parte de quem escreve ou publica, contra a censura.
O autor era um dos diretores da Light,
é verdade este “bilete”, e está documentado. No dia 14 de dezembro de
1976, a mulher de uma autoridade recebeu de presente de uma amiga o
livro Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, então comercializado num
envelope de plástico lacrado junto com um cartão de Boas Festas. Ela leu
trechos do conto-título ao marido e este ligou para Armando Falcão,
então ministro da Justiça. É o que reza a lenda.
No dia seguinte, 15/12/1976, o Diário Oficial da União publicava o seguinte despacho do ministro: “Nos
termos do parágrafo 8º do artigo 153 da Constituição Federal e artigo
3º do Decreto-Lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970, proíbo a
publicação e circulação, em todo o território nacional, do livro
intitulado Feliz Ano Novo, de autoria de Rubem Fonseca, publicado
pela Editora Artenova S. A., Rio de Janeiro, bem como determino a
apreensão de todos os seus exemplares expostos à venda, por
exteriorizarem matéria contrária à moral e aos bons costumes.
Comunique-se ao DPF”.
Na semana passada, os ministros Dias Toffoli
e Alexandre de Moraes, do STF, acrescentaram novas páginas a proibições
deste tipo, mostrando, mais uma vez, e certamente não foram os últimos a
fazê-lo, que a censura no Brasil é um tiro pela culatra, um ato
execrável, predatório e inútil, que contraria os objetivos aos quais se
propõe: proibir, calar, vetar, impedir, prejudicar. A dupla de ministros proibiu as publicações da revista Crusoé e do site Antagonista retirando-os do ar. De novidades na truculência, somente a tecnologia e os neologismos sites que os hospedam.
A censura de vez em quando aparece, aqui e
em outros lugares: os censores proibiram Gustav Flaubert, na França, na
segunda metade do século XIX, levando o autor aos tribunais, ocasião em
que o grande escritor, apavorado, recuou covardemente e disse que o
propósito de seu romance Madame Bovary era moralizar e educar as
moças. Nos EUA, um juiz com mais modéstia do que os dois ministros
citados, solicitou parecer literário e liberou Ulisses, de James Joyce, na segunda metade do século XX.
Os dois magistrados do STF não consultaram
os colegas e nas horas seguintes já sofriam pressões de todos os lados,
incluindo a própria trincheira onde atuam para defender a Constituição. Celebremos que recuaram, mas eles têm que
recuar mais e respeitar os limites da Constituição em vigor para evitar o
triste recorde do ministro da Justiça, Armando Falcão, que, em apenas
quatro anos, proibiu mais livros do que a Inquisição nos temos
monárquicos e do que o famoso Index Librorum Proihibitorum (Índice dos Livros Proibidos) a Igreja Católica.
Rubem Fonseca recorreu à Justiça. O processo demorou 13 longos anos e, no segundo semestre de 1989, Feliz Ano Novo
foi enfim liberado, mas em apertado placar de 2 x 1, no então Tribunal
Federal de Recursos (TFR) que virou TRF depois da Constituição de 1988.
Numerosas edições piratas já tinham sido feitas por todo o Brasil,
talvez até mesmo pelo próprio editor. Infelizmente, é verdade esse bilete. E
felizmente é também verdade que dos 11 ministros a maioria deles não
pensa em censurar a palavra escrita nesses tempos em que ela já está
proibida pelo seu principal inimigo, o analfabetismo, que leva o Brasil a
ser uma nação de mais de 200 milhões de habitantes, que tem 143 milhões
de eleitores, nem todos leitores, dos quais a maioria não entende o que
ministros do STF escrevem, mas entende o que escrevem os jornalistas em
publicações como a Crusoé e o Antagonista, cujos
diretores, os jornalistas Mario Sabino e Rodrigo Rangel, emitiram nota
pública na quinta-feira passada agradecendo aos leitores a solidariedade
durante os poucos dias que a revista e o site foram mantidos sob censura.
*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
http://portal.estacio.br/instituto-da-palavra