Coluna publicada em O Globo - Economia 22 de agosto de 2019
Começo
a examinar aqui algumas teses politico/jurídicas supostamente
articuladas para conter “excessos da Lava-Jato”. Conhecendo a prática do
direito penal no Brasil, sabe-se que advogados, juristas e juízes
sempre encontraram teses para tudo. Basta acompanhar um debate no STF –
longas argumentações, na técnica jurídica, para sustentar verdades
perfeitamente opostas.
Por exemplo: a prisão em segunda instância é ou não constitucional?
Há teses para os dois lados. O que fazer? Vai aqui uma sugestão. Examinar as teses dentro do contexto em que foram criadas.
Esclarece muita coisa, espero.
Criminalização da política
– a expressão tem sido utilizada para atacar a Lava Jato, em especial, e
as ações de combate à corrupção em geral, envolvendo políticos e seus
partidos. Diz que certos promotores e juízes têm uma visão negativa do
exercício da política, enxergando só roubalheira e troca de favores,
cegos para a arte de propor e negociar a implantação de projetos de
governo. Por exemplo: criminalizar
a política seria não perceber que a negociação de cargos é parte do
processo legítimo de formar maiorias – e não uma simples compra de
votos.
Do mesmo modo,
criminalizar a política seria não perceber que a distribuição de verbas
públicas faz parte do processo legítimo de administrar. Nessa intepretação,
promotores e juízes – todos sabem quais – seriam moralistas xiitas,
querendo jogar os todos políticos na fogueira da Lava Jato. Foi com base nesse
entendimento que deputados e senadores aprovaram a lei de abuso de
autoridade, com o apoio de magistrados de cortes superiores.
Justificaram: tem que colocar um freio na Lava Jato porque senão ela vai
avançar contra a classe política.
Mas, olhando os fatos, a Lava Jato
não pega políticos, pega políticos ladrões. Não avança contra a classe
política em abstrato, mas contra membros da classe política que
colocaram nos seus bolsos ou no caixa de seus partidos um dinheiro que
não lhes pertencia. Dinheiro do público.
Ora, quem criminalizou a política?
Agentes públicos que apanharam a corrupção ou políticos que se
corrompiam há muitos e muitos anos?
Criminalização da atividade empresarial
– a lógica é a mesma. A expressão quer dizer que a Lava-Jato, no fundo,
considera criminosa toda a atividade no mundo dos negócios,
especialmente dos grandes, sobretudo as empreiteiras. Procuradores e
juízes da operação seriam xiitas contra o capitalismo. A contra-intepretação vai na mesma
linha. A história econômica mostra que, em qualquer país, sempre há o
risco de se cair numa modalidade conhecida como “crony capitalism”, o
capitalismo de amigos, arranjo entre empresários e políticos e agentes
públicos. As empresas financiam eleições, os políticos e agentes
distribuem facilidades (“boas” leis e “bons” negócios). Assim, as
empresas não precisam ser eficientes, basta ter “bons” amigos no governo
e na política.
No comunicado em que informou
sobre o processo de delação premiada, a direção da Odebrecht diz mais ou
menos o seguinte: a companhia sempre foi de ponta, não precisa dessas
práticas. Um acionista da empreiteira me disse uma vez: todo mundo fazia, como não fazer? O capitalismo de amigos cresceu no
Brasil sem restrições, em larga escala. De novo: quem criminalizou a
atividade empresarial, a Lava-Jato que apanhou as falcatruas ou os
empresários e políticos que organizaram e apitaram o jogo dos negócios
facilitados?
Empresas brasileiras capturadas na
Lava-Jato foram também apanhadas nos EUA, como a Petrobras e a
Odebrecht. E chama a atenção uma diferença de tratamento. Nos EUA,
acordos de leniência saíram rapidamente, com pagamento de pesadas
indenizações e liberação das companhias para que voltassem a atuar
normalmente. No Brasil, o que está destruindo
empresas – e empregos – não é a Lava-Jato, mas um emaranho jurídico que
impede o fechamento de acordos de leniência, com negociações com
diversos órgãos, em um processo sem fim.
Não, a Lava-Jato não é contra o capitalismo. É contra um capitalismo de compadres, que muita gente tenta restabelecer.
Carlos Alberto Sardenberg, jornalista
(Continua com análise da tese do “cerceamento da defesa”)