É onde estamos: a truculência que se pretende manifestação política
Veja, leitor, a gramática da negociação que prepondera: um senador da República que trata policiais grevistas tentando lhes passar o trator por cima; [político cujo salário ultrapassa,no mínimo, em dez vezes ao salário proposto aos policiais.] uma polícia amotinada que tapa o rosto e reage metendo bala num senador da República. Não é pouca a ousadia desses agentes da segurança pública, os primeiros a violar a fronteira — a da prudência — que separa Estado e bandidagem.
A Constituição veda qualquer tipo de movimento grevista por policiais — o Supremo foi expresso a esse respeito em decisão de 2017. Aqueles policiais, no entanto, não apenas se amotinaram em greve; mas foram às ruas para promover o terror — determinar toque de recolher, mandar fechar o comércio, como fazem os traficantes — e ameaçar a população que juraram proteger. Mais precisamente: usaram a vida da população para chantagear governante.
Não tardaria, entretanto, para que os teóricos da revolução reacionária começassem a ensaiar — aliás, assim como quando da greve criminosa dos caminhoneiros — o texto de que o terrorismo dessa milícia seria manifestação popular de liberdade...[vivemos em uma nação em que tudo é permitido em nome do exercício da liberdade de expressão, avalizado recentemente pelo STF.] A quem interessa incentivar — dar lastro intelectual — a levantes policiais Brasil adentro? A quem interessaria — senão a um projeto autocrata — o enfraquecimento dos governos estaduais?
Atos como os havidos no Ceará — conjunto de erros alarmante — ilustram o conceito de que, testada com rara frequência, esticada sob intensidade sem precedentes em tempo democrático, a corda da democracia, quando brevemente afrouxada, nunca volta ao lugar anterior. As imagens de um senador que pretendeu tratorar indivíduos, os quais poderia matar, e que recebe como resposta tiros disparados a esmo, em meio à multidão, por policiais em atitude de milícia, corroboram isso; são a expressão de que os envolvidos — todos os enredados na barbárie de Sobral — já se moviam num terreno avançando da regência autoritária, e sem necessariamente perceber.