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terça-feira, 12 de setembro de 2023

Zeitgeist - O Supremo está abusando do direito de errar por último - Merval Pereira

O Supremo Tribunal Federal (STF) está abusando do direito de errar por último
Alguém tem de avisar às excelências que a frase de Rui Barbosa tem o sentido de que o STF tem a palavra final. 
Mas e se a palavra final de um mesmo juiz muda como biruta ao vento? Muda o Zeitgeist (espírito do tempo, em alemão), muda o voto? 
 
O então ex-presidente Lula foi para a cadeia por uma decisão do Supremo de permitir a prisão depois de condenação em segunda instância. Ficou preso 1 ano, 7 meses e 1 dia, período em que vários habeas corpus em seu favor foram recusados pela maioria do Supremo. Um belo dia, ministros mudaram de ideia e de voto, permitindo que se formasse a maioria para liberar Lula: Rosa Weber, que sempre fora contra, mas seguira a maioria na votação anterior, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, alegando que havia abuso na prisão em segunda instância. 
 
O ministro Dias Toffoli, ao tomar a decisão drástica de anular todos os processos da Lava-Jato, mostrou quão volúvel é.  
Umbilicalmente ligado ao PT, de quem foi advogado, e a Lula, foi cruel ao impedi-lo, preso, de assistir ao funeral de um irmão. 
Ao assumir a presidência do STF, inovou ao convidar para assessorá-lo o general Fernando Azevedo, um militar tão próximo ao então presidente Bolsonaro que acabou nomeado ministro da Defesa. 
E passou a chamar o golpe de 64 de “movimento militar”. 
 
O ministro Gilmar Mendes, fluente em alemão, sabe o que é isso. Classificou de cleptocracia o governo petista, com base nas descobertas da Operação Lava-Jato. 
Mudou o Zeitgeist, mudou sua visão. Classificou de “organização criminosa” o grupo de Curitiba que desnudou a “cleptocracia”, depois que conversas entre os procuradores e o então juiz Sergio Moro foram vazadas devido ao hacker, hoje preso, Walter Delgatti. 
 
O ministro Gilmar alega, com razão, que não se pode combater a corrupção cometendo ilegalidades. 
 Mas por que os processos contra os corruptos não continuaram até o final, escoimados das ilegalidades? 
A velha máxima jurídica de que “o que não está nos autos não está na vida” já não vale mais. As provas obtidas de maneira ilegal pelo hacker contra os procuradores de Curitiba e Moro foram usadas em diversos votos por variados ministros, até liberadas para a defesa de Lula.

O advogado Alberto Toron, de muitos dos envolvidos na Lava-Jato, aplaudiu a decisão de Toffoli e alegou que não se pode saber a legalidade das decisões sobre o acordo de leniência da Odebrecht porque há “incertezas quanto à veracidade das informações que constam dessas plataformas” (referindo-se aos sistemas MyWebDay e Drousys, que guardavam os nomes, codinomes e quanto cada corrompido recebeu).

Por acaso foi atestada a veracidade das mensagens hackeadas dos celulares dos procuradores no Telegram? 
Também lhes faltam a “cadeia de custódia”, até por terem sido conseguidas de maneira ilegal. 
Além do mais, as confissões foram fartas, os bilhões devolvidos são reais, assim como reais são os bilhões de dólares que o governo brasileiro pagou a investidores estrangeiros da Petrobras e de outras estatais. 
A cleptocracia foi comprovada vastamente, e agora, com a liberação geral de todos os condenados, viveremos a esdrúxula situação de ter que devolver dinheiro a corruptos. 
 
Veja-se o caso atual da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do ex-presidente Bolsonaro. 
Não é preciso ser bolsonarista para estranhar que nenhum ministro do Supremo tenha se levantado contra a prisão preventiva alongada do militar, método denunciado como “tortura psicológica” pelo ministro Toffoli contra a Lava-Jato. 
 
Outra questão que a volubilidade do Supremo pode provocar: até quando as consequências da delação do assessor de Bolsonaro valerão? Bolsonaro continuará inelegível ou, se mudar o Zeitgeist, mudarão também os votos de nossos ministros? 
Se eventualmente a direita ganhar a eleição em 2026, as joias acabarão legalizadas? 
Qual será o Zeitgeist do momento? 
São dúvidas que parecem absurdas, mas pertinentes diante da insegurança jurídica que as mudanças de rumo do Supremo ensejam.
 
Merval Pereira, colunista - O Globo


quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Torcida pequena e barulhenta - Alon Feuerwerker

Análise Política

Processo eleitoral é ambiente propício a ciclotimias. A luta pelo poder mexe forte com a emoção, e costuma levar a oscilações. Vai-se da euforia à depressão, e vice-versa. Buscar os fatos e as variáveis objetivas é prudente para evitar ser arrastado na montanha russa. E é sempre razoável trabalhar com a possibilidade de a realidade virar de repente.

Semanas atrás, o vento soprou a favor da assim chamada terceira via, com a vitória de João Doria nas prévias do PSDB, o lançamento da pré-candidatura de Sergio Moro e a entrada mais firme de nomes como Rodrigo Pacheco e Simone Tebet. Do mesmo jeito que soprara a favor, e sem que se saiba exatamente por quê, algumas semanas depois o vento virou.

Serão só as pesquisas?

E, agora, no “Zeitgeist” deste nosso microtempo, a única dúvida é se Luiz Inácio Lula da Silva ganha no primeiro ou no segundo turnos, neste caso contra Jair Bolsonaro. Melhor ir com calma. Faltam quase nove meses para o primeiro comparecimento às urnas, tem muita água para correr sob a ponte. E qual a situação de cada um?

A de Jair Bolsonaro é peculiar.
Os números da vacinação contra a Covid-19 no Brasil vão bem, e as principais estatísticas econômicas na passagem de ano (na esfera fiscal, no comércio exterior e no emprego) vêm vindo algo acima das (más) expectativas. Mas as pesquisas mostram a dificuldade de o presidente fazer boas notícias virarem musculatura.

Cada um tem sua explicação. Na pandemia da Covid-19, tema-líder nas preocupações do povo, Bolsonaro fez aos adversários o favor de projetar a imagem de alguém muito mais apetrechado para criar problemas do que para resolvê-los. E essa impressão acabou contaminando o conjunto da imagem presidencial. Dificuldade que mais se agrava quanto mais incompreensíveis são as atitudes do presidente em relação às vacinas.

Daí a, por enquanto, baixa capacidade de o governo transferir ao presidente o capital acumulado nas realizações de seus ministros
O que se complica por outro detalhe
Bolsonaro produz polêmicas em série que geram bem mais calor que luz, aí as entregas materiais do governo enfrentam outro obstáculo para ocupar espaço comunicacional.

Lula está num momento favorável. Recolhe inercialmente, como antípoda natural de Bolsonaro, a maior parte da rejeição ao presidente e pode dar-se ao luxo de trabalhar, por enquanto, a favor do tempo. Período que se bem utilizado servirá para treinar para quando tiver de caminhar em meio ao inevitável tiroteio verbal e às cascas de banana. [lula, o descondenado,  conta como alguma coisa? existe politicamente?]

E os demais? A terceira via até o momento continua fazendo tudo igual à espera de que, desta vez, acabe colhendo um resultado diferente. Sua principal mensagem, “contra os extremos”, vem dando pouco retorno desde 2018, mas o pessoal não mostra sinal de esmorecer. Seguem firmes fazendo musculação dentro da bolha.

Os times da terceira via têm lembrado as agremiações futebolísticas sobre as quais certa hora o locutor para e diz: “a torcida é pequena, mas olha o barulho que faz”.  A grande aposta do “centro” continua sendo Jair Bolsonaro desmoronar politicamente e abrir espaço para um renovado antilulismo que não precisaria carregar o passivo do bolsonarismo. Por enquanto não há sinal de isso acontecer. Mas, como disse, falta muito tempo para a eleição.[tempo que apresentará resultados favoráveis ao capitão - tentando evitar a segunda vitória do presidente Bolsonaro, os inimigos do presidente = os inimigos do Brasil = lançaram um balão de ensaio mostrando pretensão de acabar com a reeleição.
O fracasso está sempre ao redor dos inimigos do Brasil = inimigos do presidente.] 
 
Alon Feuwewerker, jornalista e analista político
 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

De quem é a culpa - William Waack

O Estado de S. Paulo

Por não entender o que acontece lá fora, governo perde guerra da comunicação  

A situação internacional que o Brasil enfrenta em relação às políticas ambientais de Jair Bolsonaro é séria e perigosa. Vamos olhar o que acontece do ponto de vista da comunicação, deixando para especialistas dos vários outros setores o mérito de questões específicas.

Existe desinformação no que se diz e se publica sobre o que acontece na Amazônia e no Pantanal? Sim. Existem interesses de competidores comerciais incomodados com a capacidade brasileira de produzir grãos e proteínas? Sim. Existem organizações (partidos, ONGs, instituições religiosas) com agenda político-ideológica atacando um governo (o brasileiro) por considerá-lo seu adversário? Sim.

Nada disso é novidade nem começou com Bolsonaro.

Mas o governo está sabendo enfrentar essa batalha da comunicação? Não. Faltam aos que tomam esse tipo de decisões em Brasília dois elementos fundamentais que ajudam a entender a natureza deste que é um dos maiores desastres de comunicação em escala internacional. O primeiro elemento é a falta de compreensão do fenômeno lá fora, mas não só. Por incrível que pareça, o governo brasileiro não entendeu a abrangência, a profundidade e o peso da questão climática e ambiental na sua escala planetária. Se isto era, nos idos da Rio 92 (quando o Brasil se preparou muito bem para o que viria), uma agenda de instituições multilaterais e de governos, empurrados em parte por ONGs, hoje a questão ambiental molda nosso “Zeitgeist”, o espírito de uma época, e condiciona a percepção da realidade de gerações inteiras de atores políticos, instituições, governos, consumidores, empresários, grandes corporações no mundo inteiro.

Há um notável apego de ocupantes de gabinetes no Planalto, especialmente generais estrelados, em enxergar no tsunami negativo lá fora em relação ao Brasil articulações contra a nossa soberania em geral e nosso governo em particular – um esquema mental diretamente transferido dos anos setenta para uma realidade muito mais complexa do que conspirações geopolíticas para negar ao Brasil seu direito manifesto de ser uma grande potência. Em outras palavras, embarcaram na guerra de ontem.

O segundo elemento que ajuda a entender o desastre de comunicação é o apego a táticas político-eleitorais – como a negação de fatos, o “deixa que eu chuto”, o xingamento do adversário, a efervescência nas redes sociais – que funcionam no ambiente polarizado de eleições. Mas que tem se mostrado inócuas em escala internacional. O “enfrentamento” duro do adversário, real ou percebido, até aqui não avançou os interesses do Brasil.

Ao contrário, se há algo que o “altivo” discurso de Bolsonaro evidencia quanto à “estratégia” de lidar com a crise internacional de imagem brasileira é a de que ele não tem nenhuma – além de satisfazer seus seguidores domésticos. E não estamos falando de danos subjetivos ou de “percepções” deste ou daquele dirigente ou personagem do debate ambiente versus economia (totalmente superado até na China): estamos falando de danos concretos à capacidade do Brasil de competir nos mercados que interessam.

O extraordinário de tudo isso é que o Brasil tem, de fato, lições a dar em matéria de meio ambiente e de como aumentar a produção de grãos e proteínas de forma sustentável e socialmente responsável. Tem lições a dar em matéria de matrizes energéticas. Dispõe de sólida tradição diplomática (hoje abandonada) na busca de decisões por consenso e cooperação multilaterais. E uma imagem (ainda que cada vez mais distante da realidade social) de um país aberto, simpático, tolerante e bonito.

São ativos desprezados na batalha da comunicação. Enfrentar o que estamos enfrentando lá fora em termos de imagem não é culpa dos outros, dos insidiosos adversários. É nossa, mesmo.

William Waack, jornalista - O Estado de S. Paulo


domingo, 28 de junho de 2020

Justiça - O “abuso” do abuso de poder






Vozes - Gazeta do Povo


Nesta temporada de pandemia cada vez mais proliferam denúncias de abusos de direitos
. Seja na esfera privada, quando alguém se aproveita de uma situação de vulnerabilidade sem o necessário tempero da ética e tenta se locupletar em determinada situação, seja na esfera pública, quando servidores públicos ou agentes políticos usam de sua prerrogativa para cometerem crimes contra a sociedade como um todo. Já pipocam casos de escândalos envolvendo compras superfaturadas de respiradores, ordenação de despesas com valores muito acima da média pela brecha jurídica da “situação de emergência” ou do “estado de calamidade”.





Também estamos assistindo ao desmonte do sistema constitucional de equilíbrio de poderes. Aquilo que uma vez entendemos como sendo o espírito da teoria da tripartição propalada por Montesquieu em “O Espírito das Leis” e que foi adotada por muitos países, inclusive o Brasil republicano, porque o imperial tinha quatro, sendo, além do Legislativo, Executivo e Judiciário, o Poder Moderador, a grande balança de equilíbrio dos interesses antagônicos, hoje parece estar passando por uma “revisão” nada, nem um pouco mesmo, legítima


É flagrante que o Judiciário tem feito exercícios muito perigosos na panaceia política brasileira. 
Um exemplo é a nossa corte constitucional. 
Reorganizada em 1988 para ser o grande bastião da democracia, deveria manter o diálogo respeitoso com os demais Poderes, estes sim, exercidos por representantes diretamente eleitos, e apenas falar quando chamada para exercer a verdadeira jurisprudentia – para dizer o direito e declarar a conformidade ou não conformidade constitucional de determinada norma.

Porém temos visto nos últimos anos um crescente apreço por uma corrente do chamado “neoconstitucionalismo”, que busca dar aos ministros um poder de, além de dizer o direito, criar a própria norma, no eventual silêncio dos demais Poderes. Ou seja, quando os Poderes cujos mandatários são eleitos se calam – mesmo que seja um silêncio deliberado e eloquente, pois “não” também é uma opção de voto – os “iluminados” do Poder Judiciário usam sua caneta para trazer à existência determinado regramento que não ecoou no desejo do povo através de seus legítimos representantes. Onde estás, ó Democracia?? Vem e acode-nos!

Nesta semana fomos surpreendidos com o voto do ministro Edson Fachin no Recurso Especial Eleitoral nº 82-85.2016.6.09.0139, nos autos de uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral, sobre um suposto “abuso de poder religioso” em pleito de 2016. Este assunto tem crescido nos tribunais eleitorais pelo Brasil curiosamente no momento em que o elemento religioso também passou a ser relevante (se não decisivo) nas últimas eleições. O incômodo tem sido sempre naquela premissa de que o povo brasileiro é “burro” demais para tomar suas próprias decisões, sendo ou tutelado por coronéis do cabresto, ou seduzido pelo “vale-galeto”, ou imbecilizado pelo pastor no púlpito.

A lei eleitoral – a Lei nº 9.504/1997, veja-se: lei, aquele diploma que passa por todo um processo perante o Congresso Nacional, e, depois de  aprovado por nós, o povo, é sancionado pelo presidente da República, eleito por nós, o povo, reconhece três possibilidades de “abuso de poder” para fins eleitorais. 
O primeiro é o chamado abuso do poder econômico, quando os recursos próprios ou de terceiros é utilizado para o desequilíbrio do pleito eleitoral. Pode ser verificado pela ação do próprio candidato ou de apoiadores, com entrega de dinheiro diretamente ou mediante prestação de bens ou serviços, como a entrega de cestas básicas. 
O segundo é o abuso do poder político, o chamado “uso da máquina” em benefício de quem já está investido de autoridade pública, e tem a seu dispor toda a estrutura do Estado na sua esfera de influência para que possa beneficiá-lo na disputa. 
E o terceiro é conhecido como abuso nos meios de comunicação, também velho conhecido do cenário eleitoral. Quantas disputas foram desequilibradas em nossa história recente através da construção ou desconstrução da imagem pública de candidatos. 

Mas, e o “abuso do poder religioso”?
Este não consta do Código Eleitoral Brasileiro. A laicidade brasileira sempre respeitou a religião como grande parceira e colaboradora do Estado na promoção do bem comum – como temos repisado aqui na coluna. O zeitgeist atual, porém, tem na religião uma “ameaça” à estabilidade das instituições (ou da manutenção de certa ordem de subserviência ao status quo) e tem-se avolumado um olhar de desconfiança ou de reprovação quanto à dimensão pública da fé religiosa. Aquela que vai acabar mostrando que a religião é, sim, uma parte indissociável da própria cidadania para que seja exercida em sua plenitude. E, lembremos, a cidadania é um dos fundamentos da República (art. 1º, II, da CFRB/88).
O Código Eleitoral não permite que candidatos recebam doações, sejam em espécie ou em bens e serviços estimáveis, por parte de organizações religiosas, e também colocam o próprio templo como um espaço chamado “de uso comum do povo”, ou seja, por causa do potencial de aglomeração (saudade desse tempo, antes da pandemia), não é permitida a campanha eleitoral no espaço físico do templo.
Porém atingir a liderança eclesiástica por exercer sua vocação de formação política do povo sob seus cuidados espirituais é, sim, uma restrição à plena dimensão do art. 5º, VI da constituição. Pois, para além da consciência e crença na dimensão privada, o Brasil celebra a liberdade para se portar na arena pública de acordo com os ditames de sua fé. E isto também se refere à escolha daqueles que os representam na promoção do bem comum através do Estado. Escolher um candidato político pode muito bem ser, sim, um ato de fé!

Assim sendo, ao entender que dificilmente o Congresso Nacional irá sancionar lei no sentido de restringir esta amplitude – lei essa que seria inconstitucional no seu nascedouro, posto que viola disposição pétrea da  Constituição  essa formação atual do Supremo Tribunal Federal parece querer arrogar-se mesmo a pretensão de ser um “supremo poder”. [está mais para PODER ABSOLUTO.] Quando vemos situações horripilantes como os inquéritos instaurados pelo mesmo órgão que depois vai julgar o feito, mandando prender opositores, ou seja, o “direito penal da vítima” em ação, e uma proliferação de decisões que legislam positivamente – criam comandos legais que não existiam, podemos saber que uma “sugestão” tem poder de muito mais do que a palavra expressa.
Foi justamente este o fim do voto do ministro Fachin no recurso acima mencionado. Eis as palavras: “Em face desses argumentos, venho propor ao Tribunal que, a partir das Eleições deste ano de 2020, seja assentada a viabilidade do exame jurídico do abuso de poder de autoridade religiosa no âmbito das ações de investigação judicial eleitoral”.

A proposição é, em outras palavras: “não existe LEI para resolver isso. Mas, como nós SOMOS a lei, proponho que comecemos a verificar tal situação para as eleições deste ano”. Mais que uma lástima, soou como uma ameaça, um verdadeiro perigo. Espero, sinceramente (talvez um sonho inatingível, mesmo pueril), que um dia alguém se levante naquela bancada, algum ministro ou ministra, imbuído  de verdadeiro espírito público, levante sua voz contra a ameaça do“abuso do Poder Judiciário”.


Crônicas de um Estado laico - Vozes - Gazeta do Povo

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Retroescavadeira e bala - O Globo

Carlos Andreazza 

É onde estamos: a truculência que se pretende manifestação política

É onde estamos: a truculência que se pretende manifestação política; que despertou — que anima — a alma ressentida dos que dão corpo à febre reacionária; que faz sentido, vende transgressão, a uma juventude desesperançada em busca de formas para existir. Retroescavadeira e bala. As forças de destruição que materializam a percepção da democracia como empecilho. O próprio espírito do tempo. O Zeitgeist    que autoriza — não pense que sem encadeamento, leitor — jornalista a dar na cara de entrevistado; que legitima parlamentar a se valer de calúnia para disseminar a misoginia característica do reacionarismo que capturou o imaginário nacional; que endossa o investimento do presidente da República contra a imprensa, difamando uma mulher, como se o ofício fosse prostituição; que impulsiona o chefe do Executivo federal a desafiar governadores; que estimula um general do Exército — chefe da inteligência institucional do governo — a apostar na instrumentalização do povo nas ruas para emparedar o Poder Legislativo; que fundamenta o sentimento da elite financeira que visita a China e volta encantada com aquele tipo de sistema em que tudo se ergue com rapidez, no que vai contida, embora não declarada, a ideia de que a vida seria mais fácil sem essas chatices de democracia representativa e de estado de direito.

Retroescavadeira existe — Cid Gomes sabe — para limpar terreno; esvaziá-lo do indesejado. Avaliemos, pois, a mensagem difundida por seu uso contra pessoas. Avaliemos a mensagem disseminada por seu uso — nas mãos de uma autoridade, contra cidadãos — como ferramenta de ação política. Ou alguém duvidará de que o recurso empregado pelo senador ex-governador contra os policiais cearenses fora pensado como um gesto político para efeito midiático?  Decerto calculou que sairia do teatro como um corajoso herói em nome do povo. Esse é o lugar autoritário em que a razão se acoelhou: o do trator como expressão do discurso político.

Veja, leitor, a gramática da negociação que prepondera: um senador da República que trata policiais grevistas tentando lhes passar o trator por cima; [político cujo salário ultrapassa,no mínimo, em dez vezes ao salário proposto aos policiais.] uma polícia amotinada que tapa o rosto e reage metendo bala num senador da República. Não é pouca a ousadia desses agentes da segurança pública, os primeiros a violar a fronteira — a da prudência — que separa Estado e bandidagem.

A Constituição veda qualquer tipo de movimento grevista por policiais — o Supremo foi expresso a esse respeito em decisão de 2017. Aqueles policiais, no entanto, não apenas se amotinaram em greve; mas foram às ruas para promover o terror — determinar toque de recolher, mandar fechar o comércio, como fazem os traficantes — e ameaçar a população que juraram proteger. Mais precisamente: usaram a vida da população para chantagear governante.

Para que não reste dúvida: um sujeito, armado pelo Estado como prerrogativa de sua função profissional, que atira que usa sua condição de vantagem — não em defesa da sociedade, sob o que regra a lei, mas em benefício de interesses corporativos, não é policial. É miliciano. [os policiais efetuaram disparos contra o senador - que usava a retroescavadeira como poderosa arma para esmigalhar policiais e familiares -  em DEFESA PRÓPRIA e de TERCEIROS, além das mulheres de alguns policiais, havia crianças, filhas dos PMs,DEFESA DO QUARTEL, invadido pelo ex-governador, que usou o a pá mecânica, como blindado.]

Não tardaria, entretanto, para que os teóricos da revolução reacionária começassem a ensaiar — aliás, assim como quando da greve criminosa dos caminhoneiros — o texto de que o terrorismo dessa milícia seria manifestação popular de liberdade...[vivemos em uma nação em que tudo é permitido em nome do exercício da liberdade de expressão, avalizado recentemente pelo STF.] A quem interessa incentivar — dar lastro intelectual — a levantes policiais Brasil adentro? A quem interessaria — senão a um projeto autocrata — o enfraquecimento dos governos estaduais?

Atos como os havidos no Ceará — conjunto de erros alarmante — ilustram o conceito de que, testada com rara frequência, esticada sob intensidade sem precedentes em tempo democrático, a corda da democracia, quando brevemente afrouxada, nunca volta ao lugar anterior. As imagens de um senador que pretendeu tratorar indivíduos, os quais poderia matar, e que recebe como resposta tiros disparados a esmo, em meio à multidão, por policiais em atitude de milícia, corroboram isso; são a expressão de que os envolvidos — todos os enredados na barbárie de Sobral — já se moviam num terreno avançando da regência autoritária, e sem necessariamente perceber.

A ideia de que se deva tomar partido no que é — de qualquer possível lado — barbárie absoluta representa a falência do equilíbrio político entre nós. A brutalidade tribalista é a régua identitária mais atraente que há.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

PT saudações

Derrota do partido é tão avassaladora que não permite nenhuma leitura atenuante

Se alguém ainda acreditava na possibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva ser candidato novamente à Presidência da República em 2018, mesmo depois da Lava Jato e do impeachment de Dilma Rousseff, o eleitor brasileiro tratou de dizer de forma clara e cristalina: não vai acontecer. A derrota do PT é tão avassaladora que não permite nenhuma leitura atenuante. Não se salvou nada nem ninguém no partido. Mesmo o rosário da renovação da sigla, que começou a ser desfiado por Tarso Genro e outros, não sobrevive a uma constatação dura: não há candidatos aptos à tarefa.

O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, citado como opção na terra de cegos que virou o partido, não quer assumir a missão nem seria um nome com trânsito suficiente para desbancar os caciques de sempre e enterrar de vez o lulismo – do qual, diga-se, foi um dos últimos produtos exitosos. Sim, porque a única remota chance de o PT se reerguer seria enterrar o lulismo, mas o partido há muito tempo fez a opção oposta, a de se enterrar se for preciso para defender Lula, em uma simbiose que as urnas acabam de rechaçar de maneira fragorosa.

Tanto que o partido não consegue pensar em uma alternativa para 2018 que não seja seu “comandante máximo”, para usar a designação que a Lava Jato deu ao ex-presidente.  A insistência na tese de que Lula é vítima de perseguição com lances patéticos como queixa à ONU e manifestações internacionais bancadas por “sindicatos” que nada mais são que versões da CUT para gringo ver mostra que o PT decidiu atrelar seu destino ao do ex-presidente.

Dilma já parece ter sido esquecida pelos petistas na mesma velocidade com que o foi pelos brasileiros. Tanto que, com exceção de Jandira Feghali, ninguém se lembrou dela nas eleições municipais. A presidente cassada tem sido vista fazendo compras tranquilamente no Rio, em um sinal inequívoco de que o discurso de que houve um golpe era uma fantasia, a única saída para um partido que perdeu o poder porque já não tinha condições de governar nem apoio popular, como o resultado das eleições tratou de deixar evidente.

É essa reflexão que o PT terá de fazer se quiser se refundar. Isso pressupõe admitir que patrocinou um esquema de corrupção cuja dimensão ainda está por ser inteiramente conhecida. Admitir que levou a economia do País à maior recessão da história. Que perdeu a governabilidade antes de Dilma perder a cadeira. E que Lula não é uma vítima de uma perseguição implacável que envolve Judiciário, imprensa, Ministério Público e sabe-se lá mais quem.

Quais as chances de o partido fazer isso seriamente? Remotas, para não dizer inexistentes.

Do outro lado do pêndulo político, o PSDB sai do pleito municipal como o grande vencedor mais por memória do eleitorado de décadas de polarização com o PT do que por força própria. Mas o fim dessa alternância, pelo simples fato de que um dos polos se esfacelou, também obrigará os tucanos a reverem sua estratégia para voltar a ter chance de governar o País.

Isso significa trocar as disputas de bastidores entre caciques para ver quem será o candidato da vez, uma constante desde a sucessão de Fernando Henrique Cardoso, por alguma nitidez programática capaz de mostrar ao eleitorado que o partido tem um projeto para tirar o País do buraco.  A pulverização de votos por uma miríade de siglas mostra que o eleitor, embora ainda enxergue no PSDB e PMDB as alternativas mais seguras à ruína petista, começa a procurar opções.

A negação da política é uma das marcas indeléveis de 2016. O único político de expressão nacional que saiu vitorioso, Geraldo Alckmin, acertou ao perceber o Zeitgeist e apostar em um candidato em São Paulo com o discurso da não política. Em escala nacional, no entanto, o País já viu o estrago que a eleição de um outsider pode provocar. Com Fernando Collor, antes. E com Dilma depois.


Fonte:   - Vera Magalhães - O Estado de São Paulo