O sermão de São Gregório Nazianzeno começa numa espécie de jubilosa exclamação:
«Páscoa, Páscoa, Páscoa, três vezes Páscoa, direi em honra da Santíssima Trindade. Esta é para nós a festa das festas, a solenidade das solenidades. Como o fulgor do sol apaga as estrelas, assim esta festividade excede a todas as outras, não só as humanas mas as do próprio Cristo e que por causa dele se celebra».
Páscoa, para nós quer dizer Passagem e faz-nos lembrar que somos peregrinos, que estamos em caminho da pátria como os israelitas estavam a caminho de Canaã, onde abundava o leite e o mel. Por isso, a nossa maior festa ainda é celebrada em marcha, às pressas, com o cinto apertado e a sandália de viajante nos pés. Ainda não chegamos, e por isso, à carne do cordeiro que comemos se misturam ervas amargas. Estamos no meio do Mar Vermelho. Em direção à Pátria, mas ainda no mundo. Estamos no deserto, vivendo da palavra de Deus.
Páscoa, para nós, quer dizer também Discriminação. É a festa da nitidez. Ou temos os umbrais de nossa alma marcados com o sangue do Cordeiro, ou pereceremos na Passagem do Anjo exterminador. Esta característica pascal parece contrária à anterior pois lá se falava de transição e aqui se fala de nitidez e essas duas idéias têm ressonâncias opostas. Convém portanto precisar melhor: A transição se refere à nossa condição exterior de peregrinos; a discriminação se refere à marca interior do Sangue de Cristo em nós. Estamos em trânsito, passando por estações intermediárias, vivendo dia a dia as gradações do mundo, mas nossa alma, por cima do mundo, está ancorada; e em contraste com o cinzento dos dias está nitidamente marcada com o rubro Sangue do Cordeiro.
A cruz que é para os gentios sinal de escândalo e de loucura, é para nós sinal de nitidez e de absoluta discriminação. Onde ela se planta desaparecem os meios-termos, os compromissos, as concordatas, e toda essa indecisão que fazia muitos israelitas no deserto suspirarem com saudades da servidão do Egito, porque lá, ao menos, tinham garantida a gamela de carne com cebolas. Para nós, a Cruz deve ser o sinal de um franco contraste. Ou somos marcados, ou não somos. Ou estamos com Cristo ou contra ele. Ou avançamos ou regredimos. Não há meio-termo à luz do círio pascal.
Sejamos pascais, sejamos nítidos; ou não seremos Cristãos.
Páscoa,
para nós, também quer dizer salvação. Se estamos em marcha, e se
nitidamente optamos, já estamos salvos, salvos em Esperança. O mesmo
Sangue que discrimina já tem a virtude salvífica, já opera o que
significa e já nos dá direito de falarmos a Deus com a
liberdade de filhos.
Terminemos com a leitura de São Gregório Nazianzeno:
«Hoje é o dia em que fugimos do poder egípcio, das mãos do odioso faraó e de seus cruéis ministros; dia em que nos libertamos da argila e das olarias. A festa do Êxodo já ninguém há que proíba celebrá-la com o Senhor nosso
Deus, e não mais com o velho fermento da malícia e da corrupção, mas com
os ázimos da sinceridade e da verdade, nada trazendo conosco do ímpio
fermento egípcio. Ontem angustiava-me com o Cristo na Cruz, hoje sou
também glorificado. Ontem com Ele morria, hoje com Ele sou vivificado.
Ontem sepultava-me com Ele, hoje com Ele ressuscito».
Reproduzido de Permanência
GLOBO Sábado, 25/3/78