“Paz, Pão e Terra”, prometiam os bolcheviques que fizeram a revolução
de 1917 sob o lema “todo poder aos sovietes” e contrariaram os cânones
do marxismo, para quem o socialismo pressupunha uma base material
desenvolvida, o que não existia na Rússia czarista. A “heresia” de
Vladimir Ilyich Lenin consistiu em pular a etapa da revolução burguesa e
fazer a revolução socialista em um país agrário, no qual a classe
operária era extremamente minoritária.
A rigor mesmo, o poder dos sovietes nunca foi constituído. A vida
desses conselhos operários foi efêmera. Cedo eles se transformaram em
peça decorativa. E a chamada “democracia proletária”, dos quais os
sovietes seriam sua expressão máxima, em uma falácia. Os hagiográficos da revolução socialista justificam o “Comunismo de
Guerra” e o “Terror Vermelho” dos primeiros anos da Revolução em virtude
da sangrenta guerra civil que se seguiu à tomada de poder. Essa mesma
visão determinista e conjunturalista também é usada para justificar os
crimes de Josef Stalin. E tendem a livrar a cara de Lenin, ao considerar
Stalin como uma distorção do leninismo.
Uma meia verdade, ou melhor, uma falsificação histórica. Após a tomada do poder, ainda em 1917, Lenin cumpre a promessa de
convocar a Assembleia Constituinte. Mas manda fechá-la logo em seguida
porque os socialistas revolucionários de esquerda e os mencheviques
liderados por Julius Martov tinham elegido a maioria. Nascia ali a
ditadura do partido único, que depois se transformaria na ditadura de
uma corrente – a do stalinismo – e, em seguida, na ditadura unipessoal
de Stalin.
Lenin e seus seguidores cumpriram a premonição de Rosa de Luxemburgo,
por meio de uma carta escrita em uma prisão alemã, em 1918: -Sem eleições gerais, sem liberdade de imprensa e de reunião, sem um
livre debate de opiniões, a vida em todas as instituições públicas
fenece, torna-se uma mera rotina e só a burocracia permanece viva (…) Na
essência é o governo da camarilha e sem dúvida sua ditadura não é uma
ditadura do proletariado, mas a ditadura de um punhado de políticos (…)
Socialismo sem liberdade política não é socialismo(…) Liberdade ativa
para partidários não é liberdade”.
Em 1º de março de 1921 os marinheiros da fortaleza de Kronstadt se
sublevaram, exigindo eleição livres nos sovietes, inclusão de todos os
partidos socialistas nos sovietes, fim do monopólio no poder dos
bolcheviques, dissolução de órgãos burocráticos, liberdade econômica
para operários e camponeses, além de restauração dos direitos civis.
A agenda democrática e a Revolta de Kronstadt tem como reposta o
massacre de seus marinheiros por tropas do Exército Vermelho comandadas
por Mikhail Tukhachevsky. A repressão à Fortaleza, símbolo da Revolução
de Bolchevique, uniu dois inimigos figadais: Stalin e Trotsky. Os
bolcheviques foram os jacobinos da Revolução Russa, elevados a enésima
potência. No livro O Fim do Homem Soviético, Svetlana Aleksievitch,
prêmio Nobel de Literatura 2015, reproduz sentenças de três
bolcheviques, que ilustram o desapreço pelo ser humano:
– Precisamos atrair para nós noventa ou cem milhões que povoam a
Rússia Soviética. Com o restante não devemos falar – é preciso
exterminá-los. (Zinoviev 1918)
– Enforcar (sem falta, enforcar para que o povo veja) não menos de
mil kulaks (camponeses ricos) presos, que enriquecem… tirar-lhe todos os
cereais, designar reféns… De tal modo que que a cem quilômetros em
redor o povo veja e trema”. (Lenin, 1918)
– “Moscou está literalmente a morrer de fome” (professor Kuznetsov
para Trotsky) Isso não é fome. Quando Tito ocupou Jerusalém, as mães
judias comiam seus filhos. Quando eu forçar as vossas mães a comerem os
seus filhos, então podem vir ter comigo e dizer “Temos fome”. (Trotsky,
1918)
A frase de Trotsky virou quase uma premonição. Quinze anos depois o
canibalismo pintou com força na Ucrânia, no período grande fome
decorrente da coletivização forçada da agricultura promovida por Stalin. Svetlana narra um desses casos: “Na aldeia deles uma mãe matou o
próprio filho com um machado para cozer e dar aos outros. O seu próprio
filho… Receavam (os pais de família) deixar as crianças saírem de casa.
Apanhavam as crianças como os gatos e cães”.
O quadro dantesco da grande fome de 1932/1933 foi produto direto de
como se deu a acumulação primitiva do socialismo diante de uma sociedade
agrária e de base material atrasada. A eliminação dos kulaks e a apropriação de grãos para a exportação
financiaram a industrialização acelerada. Em apenas dois planos
quinquenais, a URSS tornou-se uma potência econômica. Mas às custas de encharcar de sangue a imensa mãe Rússia. Da Ucrânia aos Urais, do Báltico ao Mar Negro, do Cáucaso a Sibéria.
O caminho da acumulação socialista escolhido por Stalin seria
inviável sem o Grande Terror dos anos 30. Com Lenin, a URSS era uma
ditadura para toda a sociedade e a democracia existia apenas no interior
do partido bolchevique, embora o direito de facção tenha sido suprimido
no 10º Congresso do PCUS em 1921. Os anos pós Lenin transformaram a
ditadura do partido único na ditadura de uma única corrente do partido
(a leninista-stalinista) e, em seguida, na ditadura unipessoal de
Stalin.
Em vez de “todo poder aos soviets”, todo Poder a Stalin. Tudo o que a
história provou ser o sinônimo da insensatez e da barbárie.
Fonte: Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP).
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quarta-feira, 25 de outubro de 2017
Todo poder a Stalin
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