A
escalada do conflito em Israel voltou os holofotes para o sionismo. De
um lado, diz-se que o sionismo é uma coisa essencialmente maléfica; de
outro, diz-se que ser contra o sionismo é o mesmo que tatuar uma
suástica na testa.
Arrisco dizer, porém, que a imensa maioria dos que
falam sobre sionismo não fez mais que seguir as exortações e invectivas
dos seus influencers prediletos, sem se dar ao trabalho de
averiguar nada.
Ninguém tem obrigação de saber sobre tudo, claro.
Mas o
mínimo que se espera é que, quando não temos a pretensão de conhecer um
assunto, não subamos em palanques virtuais para pedir cabeças e dar
chiliques.
Como faz parte da minha profissão escrever
sobre as coisas – e como, ainda por cima, tenho interesse em história
do pensamento racial por causa das semelhanças entre o neorracismo negro
e o nazismo –, fiz o elementar: li O Estado Judeu (1895), de
Theodor Herzl, a fim de comentá-lo aqui. Esse opúsculo é a fundação do
sionismo (ou do “sionismo moderno”, como dizem os sionistas mais ousados
que alegam que o sionismo está na Torá).
Theodor Herzl (1860 – 1904) nasce em Peste (metade de Budapeste), no Império Austro-Húngaro, numa família de judeus assimilados. O que é um judeu assimilado?
Bom,
o judaísmo é pelo menos duas coisas ao mesmo tempo: uma religião e uma
etnia.
Ao contrário das demais religiões abraâmicas, o judaísmo não faz
proselitismo e não está de portas abertas para a entrada de qualquer um.
Nem sempre foi assim.
Na Antiguidade tardia, os judeus converteram pelo
menos dois grupos populacionais relevantes: algumas tribos nômades dos
cazares, que ficavam rodando pela atual Ucrânia, Rússia e Cazaquistão, e
algumas vilas etíopes.
Os etíopes ficaram em relativo isolamento na
maior parte da História, mas hoje judeus negros têm direito à cidadania
israelense e, de fato, a esmagadora maioria vive lá hoje.
Já os cazares,
que deixaram de existir enquanto povo ou tribo, deixaram descendentes
entre os judeus asquenazitas. Isso não quer dizer que os judeus
asquenazitas não têm origem hebraica; quer dizer somente que são
mestiços que têm o sangue dessa tribo extinta de língua túrquica.
De
meados do século XIX a meados do século XX, floresceu o racismo
científico. Por isso, o judaísmo era facilmente identificado com uma raça.
À epoca de Herzl, portanto, um “judeu assimilado” era um indivíduo de
raça judaica que aderiu à cultura do seu meio.
Isso poderia incluir a
conversão à cristandade, ou a adoção de um cientificismo ateu.
Theodor
Herzl, então, era um judeu assimilado no Império Austro-Húngaro. Sua
primeira língua era o alemão e ele era um fervoroso germanófilo em sua
juventude: achava que a germanização progressiva faria os indivíduos de
origem judaica, como ele, a evoluírem. No âmbito pessoal, tinha planos
de ser um grande engenheiro.
O motivo era o Canal de Suez, um grande um
projeto utópico dos sansimonianos que acabou dando certo.
Fizeram parte do
movimento, inclusive, judeus sefarditas franceses, os Irmãos Pereire
(um afrancesamento de Pereira), que eram banqueiros rivais dos
Rothschild, também banqueiros judeus, porém asquenazitas.
Herzl
não deu certo na engenharia e foi para as humanas. Virou jornalista,
poeta e folhetinista (profissão hoje extinta, a do escritor de romances
que saíam em capítulos nos jornais, como novela de TV, só que por
escrito: Machado de Assis e Victor Hugo eram folhetinistas).
Um
episódio, porém, o converteu num ativista político: o Caso Dreyfus (1894
- 1906).
Em resumo, um militar francês de origem judaica, Alfred
Dreyfus, perdeu as patentes e foi condenado pela França à prisão
perpétua por traição, mesmo sendo inocente.
No fim, após grande comoção
pública, Dreyfus foi inocentado e recuperou as patentes. A França é um
país bem antissemita (basta comparar a boa vontade dos franceses para
delatar aos nazistas gente de sangue judaico); assim, restou claro que o
preconceito contra a origem racial de Dreyfus foi o motivo da condenação.
Para
piorar, o demagogo Karl Lueger, na Áustria-Hungria natal de Herzl,
arrastava multidões com sua pauta antissemita. Foi um modelo para o
jovem austríaco Adolf Hitler.
Assim, Theodor Herzl viu frustrada a sua
ideia de viver reconhecido como um germânico pleno, cultor da língua.
Daí resultou a sua ideia do Estado Judeu. O Caso Dreyfus começa em 1894;
em 1895 sai Der Judenstaat, ou O Estado Judeu.
Mas
o que é um judeu? Essa é uma questão com a qual Herzl se bate no seu
opúsculo. Herzl decididamente não era um religioso: não se deu nem mesmo
ao trabalho de circuncidar o filho. No entanto, a “fé” é apenas a
segunda das duas coisas apontadas que unem o povo judeu, e aparece como
fator de união só do meio para o fim do escrito. A primeira dela é o
antissemitismo. Diz ele: “Nós somos um povo: nossos inimigos nos fizeram
um só sem o nosso consentimento, como sempre acontece na História. Nós
nos unimos no sofrimento, e no sofrimento descobrimos, de repente, a
nossa força. Sim, nós temos a força para construir um Estado; na
verdade, um Estado Modelo.” (Eis o alemão para quem quiser comparar:
“Wir sind ein Volk – der Feind macht uns ohne unseren Willen dazu, wie
das immer in der Geschichte so war. In der Bedrängniss stehen wir
zusammen und da entdecken wir plötzlich unsere Kraft. Ja, wir haben die
Kraft, einen Staat, und zwar einen Musterstaat zu bilden.” Basta ir no Wikisource, pois o texto original está em domínio público. Os direitos das traduções são outra história.)
Abstraída
a questão religiosa, o que é um judeu? Para Herzl, um judeu é aquele
que é perseguido por ser judeu. Assim, uma consequência óbvia tirada
pelos contemporâneos de Herzl é que ele fomentaria o antissemitismo para
fazer prosperar o seu projeto político. Do mesmo jeito que os líderes
do movimento negro precisam aumentar o racismo para provar que o seu
próprio trabalho é fundamental. A pretensão de falar em nome da
coletividade dos judeus também lembra o identitarismo. Mas o que me
salta às vistas nesse trecho é a possibilidade de criar uma identidade
baseada na opressão social, em vez de numa realidade concreta. Transfira
isso para a definição de “mulher” e pense no que pode dar.
Herzl
se defende das acusações de que ele precisa criar antissemitismo onde
não há, ou aumentar onde já há. A sua defesa consiste em atacar a
“assimilação”, dizendo ser ela impossível, exceto por meio dos
casamentos mistos. Só por meio da miscigenação os judeus poderiam ser
assimilados: “A assimilação, pela qual compreendo não só a mera
aparência exterior das roupas, dos estilos de vida, dos costumes e da
língua, mas, em vez disso, uma identificação em um sentido e um tipo... A
assimilação generalizada dos judeus só poderia ser feita por meio dos
casamentos mistos.” (Em alemão, procurar pelo parágrafo que começa com
“Die Assimilirung, worunter…)
Resta perguntar, então,
o porquê. Será o judaísmo considerado uma raça também por Herzl? Uma
raça associada a um modo interno de sentir? A biologia molda o nosso
sentido interno, de modo que acabar com o judaísmo só seria possível por
meio de uma mudança biológica? Outra vez, isso lembra o cartaz dos
racialistas na Avenida Paulista: “Miscigenação é genocídio.” E os
tribunais de heteroidentificação racial também exigem uma conformação
psicológica (que nada mais é que a adesão ao movimento) para reconhecer
alguém como negro.
Seja
como for, uma coisa relevante que transparece em Herzl é que as
comunidades de origem judaica àquela altura mantinham o hábito de casar
entre si, de modo que a “raça” permaneceria sem muita mestiçagem. (O
exemplo que ele dá é o de um "casamento misto" reconhecido pela Hungria
no qual uma judia se casava com um "judeu batizado".) A relevância do
caráter racial para o debate sionista não pode ser diminuída, e o melhor
exemplo disso é a politização que a questão da remotíssima miscigenação
com os cazares (lá na antiguidade…) causou entre judeus e não-judeus no
século XX, com a publicação do livro de Arthur Koestler, um judeu
asquenazita que queria provar que não tinha nada a ver com semitas.
Mas
bom, a maior diferença entre os negros e os judeus, no que concerne a
essa questão, é que podemos sem pestanejar dizer o que é um negro: um
negro é alguém de pele negra.
Não há nada de cultural envolvido nessa
questão; negros podem ser judeus, muçulmanos, ateus, brasileiros,
congoleses, etíopes...
Não faz sentido perguntar se um negro é
assimilado; faz menos sentido ainda um negro dizer que “se descobriu”
negro. Por outro lado, as discussões sobre assimilação eram habituais na
Europa de Herzl; e é possível alguém se descobrir judeu após analisar o
próprio histórico familiar.
Afinal, o que é um judeu? Herzl não dá uma
definição, nem toca nos critérios pelos quais alguém é reconhecido ou se
reconhece como judeu.
Respondamos, então.
Considerando a biologia algo apenas acidental, podemos com facilidade
apontar o critério primário segundo o qual alguém é apontado como judeu:
ter nascido de um ventre judaico. Ou seja, o judeu é o filho da judia
(e não necessariamente do judeu). Judeu nasce judeu, não se torna. E
como a própria judia pode ser ateia ou convertida a outra religião,
resulta que esse critério cultural acaba redundando na matrilinearidade
pura e simples. Assim, das três religiões abraâmicas, só uma tem porta
de saída: se no islamismo podem te matar caso você queira sair, no
judaísmo você continua sendo considerado judeu mesmo que nunca tenha
sido nem sequer circuncidado.
O leitor deve saber da
“conversão” ao judaísmo de figuras ilustres, tais como a filha de Trump,
que se casou com um judeu e hoje é considerada judia. A mãe da
israelense Shani Louk é uma alemã de origem católica que fez o mesmo
trajeto da Ivanka Trump: casou com um judeu e foi aceita como judia. Não
posso apontar fontes, porque meu conhecimento do assunto é oral e o
judaísmo não tem Papa, de modo que não é fácil apontar uma doutrina
oficial. De todo modo, explico o que eu aprendi oralmente: não é
possível se tornar judeu; o que é possível é a autoridade religiosa
reconhecer que você é uma alma judaica que foi, digamos assim,
extraviada para um útero não-judaico.
Sei
disso porque um familiar mestiço, judeu segundo critérios étnicos,
resolveu virar judeu religioso e quis que o lado gentio da família
aderisse à religião judaica junto com ele. De minha parte, achei a
religião mais parecida com um transtorno obsessivo compulsivo
generalizado, e não poderia haver proposta menos tentadora. E por aí eu
entendi também por que tem tanto judeu ateu: dá trabalho demais ser
religioso e é muito aflitivo, pois envolve passar o dia inteiro pensando
nisso. A religião inclui até agradecimento a Hashem quando se vai ao
banheiro. E Hashem é o modo de se referir a Deus, cujo nome não deve ser
pronunciado ou escrito à toa.
Em seu opúsculo, Herzl
menciona a acusação de que ele fortaleceria o antissemitismo justamente
quando o processo de assimilação estaria quase concluído.
De fato,
muitos europeus de origem judaica (como se costumava dizer
então) haviam se convertido a diversas religiões cristas, ou haviam até
nascido num lar cristão novo.
Karl Popper, austro-húngaro, nasceu num
lar cristão novo luterano;
Edith Stein se converteu ao catolicismo,
virou freira e foi canonizada; Jacques Maritain, filósofo católico
francês, casou-se com uma judia que se converteu ao catolicismo junto
com a irmã;
Karl Polanyi, austro-húngaro, nasceu num lar cristão novo
calvinista;
Aurel Kolnai, austro-húngaro, converteu-se ao catolicismo…
Que eu saiba, não existia isso de ser reconhecida como alma judaica para
se casar com um judeu; ou, se havia, não havia interesse. A tendência
parecia ser a de o grosso da tribo judaica se dissolver na cristandade
(como as tribos europeias fizeram antes), sobrando só os ortodoxos, cuja
identidade estaria fundada na observância à religião judaica… Até
aparecer o sionismo. Aí ficamos fazendo cálculos de matrilinearidade, ou
recorrendo a tribunais de heteroidentificação de alma, para decidir
quem é judeu.
Porém, uma fé que concorria com as
confissões cristãs era a fé laica na ciência, o cientificismo que tanto
atraíra o jovem Herzl à engenharia. E o que vemos no seu esboço de como
deveria ser o Estado Judeu é a manifestação da fé na Ciência. Que fica
para o próximo texto.