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segunda-feira, 11 de março de 2019

Tortura no quartel

Laudos obtidos por VEJA mostram que lesões sofridas por suspeitos na Vila Militar do Rio foram muito mais graves que as verificadas em atestados do Exército


A intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, que entre avanços e retrocessos durou dez meses e se encerrou no fim de 2018, reserva um capítulo que em nada enobrece a história do Exército. Em agosto passado, uma megaoperação que abrangeu os complexos do Alemão, da Penha e da Maré, na Zona Norte carioca, levou à cadeia 86 suspeitos em um intervalo de cinco dias — feito alardeado como grande vitória na queda de braço das forças militares com o crime incrustado na cidade. Mas depois das comemorações o enredo desandou. Encaminhados à Vila Militar, onze dos presos relataram ter sido submetidos a horas de tortura à base de socos, pontapés, pisões no rosto e nas orelhas, chicotadas e choques elétricos. Ao Ministério Público Federal, Lucas Vinícius Machado, de 25 anos, acrescentou: a barbárie, tocada por homens sem uniforme, ocorrera em uma certa “sala vermelha” do quartel.

Obtidas por VEJA, as fotos de oito dos jovens, com ferimentos diversos e hematomas, não deixam dúvida sobre o estado em que se encontravam quando, depois de um dia inteiro sob a guarda dos militares, foram recebidos pela Justiça comum (acusados de tráfico de drogas e porte ilegal de armas, eles continuam presos e aguardam julgamento). [os 'suspeitos' - sempre são suspeitos e sempre são apresentados como inocentes - não são tão inocentes, tanto que a prisão foi mantida na audiência de custódia, por uma magistrada da Justiça Comum e continuam presos desde agosto 2018.] Foi ali, diante da juíza Amanda Azevedo Alves, da 23ª Vara Criminal, que falaram dos maus-tratos em depoimentos que se repetem no padrão de brutalidade. Na audiência de custódia, a juíza registrou, só de observá-los, que os suspeitos haviam se apresentado “lesionados e com diversos ferimentos”. [o entendimento da juíza apenas expressa a forma como os réus foram apresentados, não havendo na matéria indicativo de onde e quando foram causadas.] 

O que era evidente a olho nu passou aparentemente despercebido pelo escrutínio do médico do Exército encarregado de fazer o exame de integridade física dos detidos, um procedimento de praxe justamente para evitar tortura e maus-tratos. O tenente Renan Girotto considerou que seis dos oito jovens ou não tinham lesões “de interesse médico-­legal” ou não exibiam machucado algum. Dois do grupo — não havia como negar, pois tinham sido baleados no confronto com os militares — exibiam “lesões graves”. O Inquérito Policial Militar (IPM) concluiu: tudo transcorreu normalmente, como esperado. Sem tortura.
 
LUCAS NASCIMENTO VIEIRA – O laudo militar (no alto) menciona hematomas na nuca e nas pernas; o da Justiça acrescenta a presença de “escoriações no rosto e nas costas”


Produzidos com dois dias de intervalo, os laudos do Exército e os da Justiça Estadual chamam atenção pelas discrepâncias. [os presos - nenhum suspeito fica preso mais de seis meses, caso dos réus,  caso não existam provas firmes de que são culpados;
seriam liberados na audiência de custódia.

E o intervalo de dois dias, entre o laudo emitido por médico perito do Exército e o de médica acionada pela Justiça, é tempo mais que suficiente para que os presos tenham se autolesionados e/ou  produzido lesões recíprocas - para criminosos o importante é jogar a culpa em quem os prendeu, muitas vezes tem êxito e são libertados no julgamento.] Os primeiros traçam um retrato bem mais tênue da situação dos jovens. VEJA teve acesso a todo o material. Segundo o inquérito militar, Lucas Nascimento Vieira, de 26 anos, estava com hematomas, escoriações e equimoses na nuca e em membros inferiores. Tudo seria, de acordo com o IPM, decorrente da “dinâmica do confronto”. “Restante do exame físico sem alterações”, atestou o tenente Girotto. Acionada pela Justiça, a médica Regina da Silva fez sua própria análise e viu coisas diferentes: detectou “es­coriações com crosta serohemática” (quando se formam cascas sobre o ferimento) por todo o corpo — testa, regiões cervical e lombar, mãos, joelhos, pés e lesão na mucosa labial. [dois dias = tempo exíguo para os ferimentos já criar cascas e com um detalhe curioso: em todos os presos o processo de cicatrização foi extremamente rápido;
que tal pensar na possibilidade de lesões anteriores ao dia da prisão?]

(...)

Os suspeitos afirmaram à Justiça ter sido agredidos com socos e pontapés, sem trégua, desde o momento em que foram capturados. O relatório do Poder Judiciário não se ateve ao exame físico e procurou responder se a narrativa dos detidos condizia com os machucados observados. A médica Regina Silva escreveu que sim; o elo era bastante plausível. Só não se pronunciou em relação a um dos casos, porque envolvia um garoto então com 16 anos que foi parar na alçada do Ministério Público da Infância e da Juventude. Em depoimento, esse adolescente também listou as agressões às quais o submeteram: choques nos testículos, no peito e na língua, spray de pimenta no rosto, coronhadas e chutes. A certa altura lançaram um cadáver sobre ele. O menor é analfabeto e selou o testemunho com a impressão digital.

(...)

Professor titular de medicina legal na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o perito Nelson Massini confrontou os dois conjuntos de pareceres — os do Exército e os da Justiça — a pedido de VEJA. Massini garante: “Os laudos do Exército omitem lesões importantes”. Segundo ele, um médico jamais poderia dispensar um exame mais detalhado em um preso que apresentasse tais lesões. “A obrigação é descrever tudo”, enfatiza Mas­sini. O defensor público Daniel Lo­zoya, que atua no caso, considera os relatos de tortura verossímeis. [defensor considera que os suspeitos foram torturados é prática comum, considerar os relatos verdadeiros e nada é a mesma coisa;
é necessário provar a veracidade dos relatos.
E quanto as discrepâncias entre os laudos não provam que um deles seja falso - foram feitos em dias diferentes, havendo possibilidade da já citada auto lesão ou lesões recíprocas causadas pelos próprios presos.

É preciso que o Brasil acabe com essa mentalidade de que a polícia (no caso em questão, o Exército Brasileiro) está errada e os marginais certos.]
O inquérito militar assinado pelo coronel Eduardo Tavares Martins, no entanto, sentencia no jargão próprio: não foram encontrados “os elementares integrativos do delito de tortura e maus-tratos”. O procurador Mário Porto, do Ministério Público Militar, questiona as acusações de tortura e diz que não há comprovação da existência de uma “sala vermelha” na Vila Militar. “É normal presos em flagrante afirmarem que foram torturados”, relativiza, embora as alegações sejam confirmadas por um laudo oficial da Justiça.

Ao saber da divergência de laudos por meio da reportagem de VEJA, Porto informou que vai requisitá-los à Justiça. Ele poderá pedir novas investigações ou recomendar o arquivamento do inquérito. Procurado, o Comando Militar do Leste alegou que não se manifestaria antes da análise do Ministério Público Militar. O tenente Renan Girotto, autor dos laudos do Exército, não foi localizado. A investigação rigorosa das acusações de tortura dentro de uma unidade do Exército é do interesse da própria instituição, que não pode ser manchada pelo comportamento de alguns de seus membros. Segundo informam todas as pesquisas, a população brasileira está exausta da bandidagem, da violência e da criminalidade — e, com toda a razão, defende tratamento duro contra marginais. Mas não ficará mais segura caso membros do Exército brasileiro tenham de fato aderido às fileiras dos criminosos.

Colaborou Leandro Resende

Publicado em VEJA de 13 de março de 2019, edição nº 2625

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