Um Judiciário democrático não depende só do que juízes fazem e decidem. Importa quem os juízes são
O baile da irresponsabilidade fiscal promovido pela magistocracia acaba de
conceder um aumento de 16% aos juízes de todo o país. Na melhor tradição da
baixa política, o Judiciário mais caro do mundo não recebeu o polpudo acréscimo
num contexto qualquer, mas em meio a uma das maiores crises econômicas da
história. No javanês judicial, seus salários estavam “defasados”. Preserva,
assim, sua morada no 0,1% mais alto da pirâmide social brasileira e dá mais uma
contribuição à crise. O patrocínio veio dos partidos que sustentam a “nova
ordem” para “limpar” a política.
A vocação rentista não teve disfarces nem meias palavras. Enquanto o aumento
não vinha, o STF resolveu se autoconceder, em 2014, o auxílio-moradia por meio
de liminar monocrática e passou a pagar o benefício ilegal de quase R$ 5 mil por
mês a todo juiz. Livre de impostos. A torpeza corporativa retorceu a letra da
lei para afirmar que a prática estava dentro da legalidade. Consolidada dias atrás a vitória do aumento, o presidente do STF foi sincero:
“Agora poderemos enfrentar o problema do auxílio-moradia”. Prometeu conversar
com o ministro relator que, por mais de quatro anos, impediu o plenário do
tribunal de decidir a respeito. Vamos acompanhar quanto tempo o tribunal
precisará para cumprir a promessa. Não se anime, pois o diabo mora nas finanças:
o gasto anual com auxílio-moradia é de R$ 1,5 bilhão; o impacto orçamentário do
aumento salarial se aproxima dos R$ 5 bilhões. Não se assuste ainda, pois
associações de juízes demandam a volta do adicional por tempo de serviço e
ameaçam convocar greve. A sociologia dá nome para essa prática, e esse nome leva
multidões às ruas para derrubar presidentes.
Temos urgência por um Judiciário democrático, mas contra ele luta a
magistocracia. A magistocracia é a fração da magistratura que hegemoniza a
cultura e arquitetura judiciais e exibe cinco vocações: é autoritária (pois
viola direitos), autocrática (pois patrulha juízes ideologicamente), autárquica
(pois se isenta de controle e prestação de contas), rentista (dispensa
explicações) e dinástica (porque quer incluir a família no baile).
Como disse a juíza Susanne Baer, do Tribunal Constitucional Alemão, em
palestra na Faculdade de Direito da USP, Cortes “devem ser desenhadas para a
diversidade” e assim representar os pontos de vista de uma sociedade plural. O
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou semanas atrás o Perfil
sociodemográfico dos magistrados brasileiros, que quantifica os padrões
demográficos, sociais e profissionais da corporação. Uma radiografia não
surpreendente: a magistratura é também predominantemente branca (80,3%),
masculina (mulheres correspondem a 38%, desembargadoras a 23%) e oriunda de
estratos sociais privilegiados (mais da metade tem pai ou mãe com diploma
universitário).
O relatório é valioso por dar números ao que o senso comum intui e oferecer
um diagnóstico a partir do qual reformas podem ser imaginadas. O retrato é
indispensável, mas ainda insuficiente. Democratizar o judiciário passa por
enfrentar a magistocracia e, entre outras coisas, pelo reconhecimento de que há
privilégios injustificáveis e que privilégios não são direitos fundamentais,
mesmo quando embrulhados para presente nessa nobre linguagem.
A liderança poderia vir do STF e do CNJ, mas precisam ter coragem de se
emancipar dos laços magistocráticos. Se o príncipe da magistocracia, o juiz
Sergio Moro, que assume seu primeiro cargo político depois das férias, recebeu
gratuitamente da sociedade brasileira o manto da infalibilidade, os barões da
magistocracia alcançaram o inverso: entre obstruções, arquivamentos e
prescrições, após anos de desgoverno institucional e de soberba individual, o
mais generoso sentimento que ministros do STF despertam tem sido a desconfiança.
Para se fazer respeitar nesta nova era que se inicia, em que nossas liberdades
estão sob a mais aguda ameaça dos últimos 30 anos, resta-lhes rejuntar os cacos
da autoridade moral perdida. Precisam parar de bailar.