O Estado de S. Paulo
Urge que o presidente deixe o papel de candidato antecipado de si mesmo e governe
Um país travado é um país que não descortina horizontes. O futuro se vislumbra sombrio, pois os impasses do presente não se resolvem. A dívida pública torna-se cada vez mais preocupante, a crise fiscal não consegue ser equacionada, o desemprego é enorme, a pandemia persiste e seus efeitos certamente se prolongarão para o próximo ano. Pessoas estão desorientadas e inseguras, com uma quebra brutal de expectativas. E no meio de situação de tal gravidade se discutem a reeleição de 2022 e uma série de questões menores e secundárias.
A
trava econômica é de natureza política. Ela se traduz pela desconfiança e pela
insegurança, sem que os investidores nacionais ou estrangeiros se sintam
confortáveis para apostar num país paralisado em suas decisões. As reformas não
andam, as discussões sobre o auxílio aos mais necessitados não encontram fontes
de financiamento, sobretudo porque os privilegiados socialmente não querem
abrir mão de seus benefícios, e o presidente não consegue decidir, embora a
própria omissão seja uma forma de decisão. Envia-se uma reforma administrativa
que não mexe com nenhum dos privilégios atuais do funcionalismo público, nem
chega sequer a cogitar, mesmo para o futuro, de mudar os privilégios do
Judiciário, do Ministério Público e do Poder Legislativo. Os mais carentes são,
mais uma vez, os perdedores.
O
presidente optou pela inação, atento aos seus grupos de apoio, agindo nas redes
sociais, olhando para a sua reeleição. Segue a pauta conservadora que o elegeu,
apesar de dar sinais cada vez mais evidentes de que não cumprirá suas promessas
eleitorais de uma reforma liberal da economia. Pouco foi feito nessa área,
salvo a reforma da Previdência. De um lado é consequente consigo mesmo, de
outro é incoerente. Acontece que estamos no final da primeira metade de seu
mandato e há um longo caminho a percorrer, uma senda em que pessoas morrem de
covid-19, estão famintas e perdem esperança na procura de um emprego ou de um
meio digno de vida. O Brasil não pode esperar 2022.
O que fazer? O instituto da reeleição foi um erro histórico. O governante assume suas funções pensando no horizonte eleitoral, quando deveria preocupar-se unicamente com o governamental. Sua função consiste em governar, e não em se reeleger. A reeleição, quando muito, deveria ser somente uma consequência, e não um projeto exercido cotidianamente. Quando das últimas eleições, o candidato Bolsonaro acertadamente se voltou contra o instituto da reeleição, ciente dos prejuízos que isso causa à Nação. Ao assumir o poder, mudou de posição. [atualizando: o compromisso do presidente foi no sentido de não ser contra qualquer proposta de emenda constitucional acabando com a reeleição - não foi o de apresentar tal emenda;
se alguém apresentar PEC acabando com a reeleição, o nosso presidente se torna merecedor de ir para o tronco.]
O mais sensato seria voltar à sua opinião anterior! Se não mais pretende fazê-lo, haveria talvez uma possibilidade intermediária. O presidente interditaria o debate sobre as eleições de 2022, declarando que essa questão só se colocará, por exemplo, em março de 2022, assumindo uma atitude de governante. [se ousasse propor data para discutir reeleição, seria condenado por atentado contra a liberdade de expressão; lembrem-se que aos inimigos do Brasil = inimigos do presidente Bolsonaro, praticamente tudo é lícito, até usar direitos assegurados na Carta Magna para impedir os apoiadores do presidente de exercerem os mesmos direitos.] Sua justificativa seria evidente: os problemas do País precisam ser enfrentados, e com medidas concretas que contrariariam muitos interesses encastelados na atual estrutura de poder. Decidir significa contrariar, pois os não contemplados sempre manifestarão seu descontentamento. O norte deve ser o bem coletivo, o Brasil acima de todos. Se isso vai ou não favorecer a eventual pretensão reeleitoral do presidente, só o tempo dirá. Quanto antes decidir, melhor para o País e também para a sua imagem. O que não se deve, em todo caso, admitir é que o Brasil siga definhando, problemas se acumulando sem solução.
Se
para isso for necessário uma reforma ministerial, então que afaste os ruídos
internos e a belicosidade contra inimigos reais ou imaginários na cena nacional
e estrangeira, e o faça em nome dessa renovação. Passaria a mensagem de que
realizaria uma grande mudança para governar, preocupado com a crise e assumindo
suas próprias responsabilidades. Certamente contaria com o apoio do Poder
Legislativo, que tem mostrado convicção reformista, particularmente clara na
aprovação da reforma da Previdência. Tem sido, infelizmente, subaproveitado por
vaidades e conflitos totalmente desnecessários e secundários. O mesmo se diga
do Supremo, que tenderia – com um apaziguamento político e não sendo objeto de
ataques – a exercer menor protagonismo político. Poderia até ser menos
demandado, tendo como efeito uma menor judicialização da política.
Urge
que o presidente tome uma atitude de governante, e não de candidato antecipado
de si mesmo. Se o fizer, o clima no País mudará substancialmente. Vivemos
politicamente fraturados, radicalizados, para além da imensa divisão que se
traduz por uma desigualdade social gritante. O Brasil poderá viver um período
de paz política, propício ao diálogo e à busca de equacionar os nossos
problemas. O presidente poderia propor uma pauta concreta de medidas a serem
adotadas, tendo como eixo o coletivo, e não o atendimento dos distintos
interesses particulares, sejam eles sociais, estamentais ou econômicos.
A
paz política propicia o diálogo e, por via de consequência, o entendimento.
Denis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia - O Estado de S. Paulo